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6 October 2024

LEMBRAM DELE? Guineense que atravessou o Atlântico para se tornar jogador de futebol muda de esporte e agora quer lutar no UFC

“E aí, cara! Tudo bem? Como é que você está? Você sabe que está falando com o futuro campeão dos pesos penas do UFC, né? (risos)”.

À primeira vista, a frase anterior é apenas o início de um diálogo. E de fato, é.

Mas para se ter a real dimensão do ‘cumprimento’ é preciso voltar ao passado. Mais precisamente ao dia 14 de fevereiro de 2009. Naquela ocasião, o navio Grande San Paolo, de bandeira italiana, acabava de aportar no terminal marítimo da capital baiana. Nele, além de tripulação e mais de mil turistas, desembarcava também um jovem adolescente de Guiné Conacri — país da costa oeste da África.

Então aos 17 anos, Lamo Mohamed Camara veio ao Brasil como clandestino.

Segundo ele, a aventura lhe custara cerca de (60 mil francos guineenses), atuais “R$ 400, R$ 500”. Em mãos, nada… Apenas a vontade de ser tornar jogador de futebol, ser tão bom quanto Ronaldinho Gaúcho, Kaká e Robinho, grandes craques da época.

“Em 1998, eu tinha cinco anos. Tinha saído de Guiné e morava com tios e primos em Marselha, na França. Vi o Brasil perder a Copa do Mundo pela tevê”, relembra Camara, que recebeu, em casa, à reportagem do Aratu Online.

Na época, seu país natal vivia sob o comando de uma junta militar após a morte do presidente Lansana (Conté). “Era um clima de tensão a todo momento. Dois anos antes (2006), já tinha perdido meu pai. Ele levou um tiro dentro de casa. Possivelmente, uma bala perdida. Lá, quando tinha protesto, eu corria para casa. Não é que nem aqui (Brasil): apito, panela… Lá era tiro pra tudo que era lado. Eu enxergava no futebol à esperança de um futuro melhor pra mim e minha  família”, ressalta.

E, eis que num o nascimento de um primo, rendeu-lhe o estopim para a maior aventura de sua vida.

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“Após a morte de meu pai, eu passei a morar com um tio. (Camara jamais conheceu a mãe). A esposa dele estava grávida, no dia em que ela entrou em trabalho de parto, fui até o porto, onde ele trabalhava para avisar. Aí, amigo… (risos). Vi aquele naviozão, bonito, grande. Perguntei: ‘para onde vai?’ Falaram:  Salvador!. Salvador? Brasil!!! Até hoje meu tio espera por meu recado. Não pensei duas vezes, peguei tudo que tinha no bolso , paguei um
rapaz e entrei. Era meu sonho passando em minha frente, não ia desperdiçá-lo”, sorridente brincou Camara, que deixou para trás um irmão gêmeo, a avó e outros 29 tios.

Por tudo isso, esconder-se no porão de um navio transatlântico de 14 andares não era “problema”. Ironicamente, porém, Mohamed não podia gozar nada da luxuosa embarcação.

Na penumbra, próximo à casa de máquina, resistia à odisseia apenas a base de água. “Na casa de máquinas era muito abafado. Subia escondido para respirar algumas vezes. Não tinha água nem comida. Fiquei 22 horas sem comer e sem beber nada. No segundo dia, saí porque precisava comer. Tentei roubar comida para matar a fome. Para beber, ia pegando restos de água que eles deixavam em recipientes”.

Heroicamente, teve êxito nesta dieta durante seis dias. No sétimo, porém, foi descoberto pela tripulação. Pronto! Era o fim de um sonho de um futuro melhor. “Eu ouvia notícias de que muitos capitães mandavam cortar o braço e jogavam os intrusos ao mar. Tive sorte. Consegui comover o capitão. Disse: ‘vou jogar futebol no Brasil’. Deu certo. Ao contrário do esperado, apesar de uns leves ‘tapinhas na cabeça’, Mohamed recebeu o carinho e o amor dos tripulantes. Da escuridão foi direto à um luxuoso quarto, com direito, até mesmo, a uma banheira de hidromassagem”, relembra.

Na chegada à capital baiana, mal sabia pronunciar o português. Falava apenas um pouco de francês e inglês. Precisou da ajuda de um intérprete da Polícia Federal. Sem documentação, ele entrou em contato com parentes na Guiné e pediu que enviassem cópias dos seus documentos.

Por ser, à época, menor de idade, Mohamed foi encaminhado ao Juizado da Infância e Juventude. Ficou sob os cuidados do juiz Salomão Resedá. Após idas e vindas, ficou sob a tutela de  Antônio Carlos dos Santos, o ‘Vovô do Ilê’.  “Sou grato por ele ter me adotado sem me conhecer, mesmo sendo eu um clandestino. Todas as pessoas que conheci aqui foram muito legais comigo”.

Em meio  à resolução dos trâmites burocráticos, ainda em 2009, chegou a ir ao recém-inaugurado Estádio de Pituaçu, assistir a goleada do Bahia  por 4 a 1 diante do Feirense. “Ali, eu me apaixonei pelo clube, pela torcida…”, recorda. Curiosamente, dois dias depois, faria um teste no Fazendão. No entanto, não foi bem.  “Ele não é um perna-de-pau, mas também não mostrou um futebol de destaque. Mas é preciso dar um desconto porque ele ficou cinco dias no porão de um navio sem comer nem beber nada, calçou um par de chuteiras pela primeira vez na vida”, disse à época, o então diretor das categorias de base do Bahia, Newton Mota.

Apesar de não ter demonstrado muito futuro em sua primeira tentativa de realizar no Brasil o sonho de virar um jogador de futebol profissional, o africano ganhou mais uma, na verdade, duas chances de mostrar seu talento no Tricolor de Aço. Após a reprovação numa quarta-feira, Mohamed retornou na quinta e, posteriormente, na sexta. Por comoção ou não, da imprensa e dos torcedores, enfim, teve êxito. Ficou pouco mais de três meses no clube. Pouco tempo, porém, o suficiente para se apaixonar pelo clube e colecionar amizades.

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Entre elas, a do polêmico meia Jobson – suspenso pela Fifa até 2019 após ter se negado  a realizar exame antidoping quando atuava pelo Al-Ittihad, da Arábia Saudita, em 2014. ” As pessoas falavam que ele era uma má companhia, nada disso. O Jobson sempre foi legal comigo. Ele, o Souza (atacante), o Marconi (volante), o Ávine (lateral esquerdo)… Eles sempre brincavam comigo, me zoavam. Eu treinava no sub-20, mas encontrava com eles na academia. Aí, era só resenha”, conta Mohamed, que já se mostra fluente no português.

LUTA

Depois da breve passagem pelo Tricolor de Aço, o africano não desistiu. Chegou a treinar no time da Associação de Bancários da Bahia (ABB), em Simões Filho. Porém, em 2011, descobriu uma nova paixão.  “Depois dos treinos de futebol, eu ficava vendo as lutas e não parava mais. Sempre fui brigão quando criança. Meu apelido era lamo, que no meu dialeto quer dizer bom de briga”, revela.

Desde então, Mohamed ingressou na academia Champion, comandada por Luiz Dórea, que já revelou o ex-campeão mundial de boxe Acelino ‘Popó’ e os ex-campeões do UFC, Júnior Cigano, Anderson Silva e Rodrigo Minotauro. De cara, ganhou elogios: “O Mohamed é um cara muito esforçado. Nasceu para a luta, é destemido, gosta de desafios. Bate muito bem. O boxe ele tirou de letra, passou para o jiu-jítsu, iniciando no MMA, e, quando entrou no octógono, parecia veterano”, disse Dórea.

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A estreia como lutador profissional de MMA ainda não aconteceu. “Em 2014, eu iria lutar mais sofri uma contusão no ombro esquerdo durante um treinamento”. Recuperado voltou a treinar e faria seu debute, em julho de 2015, no Champion Fight. Novamente, porém, o destino lhe pregou uma nova ‘peça’. “Uma semana antes da luta, lesionei o ombro esquerdo de novo. Mas aí, tive que fazer uma cirurgia delicada. Eu nunca tinha feito academia, meus músculos eram fracos. Mas, graças ao Doutor Roberto Maia deu tudo certo”.

Mohamed, que ainda se recupera da cirurgia (faz sessões de fisioterapias diárias) não vê a hora de estrear no UFC, maior evento de MMA do mundo. “Apesar de sequer ter feito uma luta, sei que vou chegar no UFC. Quero que olhem e digam: é aquele menino guineense, que atravessou o Oceano Atlântico no porão de um navio. Quando fizer minha estreia, podem esperar… vou caçar esse cinturão”, diz o confiante lutador, que desde junho de 2012 ganhou mais uma nova família.

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“Passei a morar com doutora Joanice Maria Guimarães de Jesus (desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia) e seu filho, o doutor Arthur Guimarães. Eles são minha nova família. A considero ela como mãe e ele como pai. Hoje, moro, inclusive, num apartamento que meu pai (Doutor Arthur) me deu (em Piatã). Devo muito a eles, por tudo que fizeram e ainda fazem por mim”, enaltece Mohamed, que é muito bem aceito pela ‘nova família’.

“É um menino de ouro. Muito respeitador, honesto, esforçado, carinhoso. Eu me lembro até hoje, quando ele chegou aqui em nossa família. Ele falava direto com os familiares lá em Guiné. A conta de telefone chegou a custar R$ 3.800 (risos), mas não tem preço vê-lo feliz. Não sofremos nenhum tipo de choque cultural, mesmo pelo fato de sermos católicos e ele muçulmano. Ele entende nossa religião e respeita”, conta a desembargadora Joanice Guimarães.

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A religião, por sua vez, já colocou Mohamed em situação inusitada. Apesar de seguir à risca os preceitos do islã (“rezo cinco vezes por dia, sobre o tapetinho de papelão”), conheceu a atual namorada, Lidiane Menezes, justamente
durante o Ramadã. Na religião muçulmana, é o mês sagrado no qual o seguidor deve abster-se de comida, bebida e outros prazeres, do levantar até o pôr do sol.

“A conheci no São João, numa festa no Pelourinho. Um amigo meu me convidou para ir lá, dançar forró. Cheguei lá e a vi. Depois de um tempo e conversa (risos), começamos a dançar. É claro que rolou química, mas eu expliquei a ela sobre o ramadã e fui compreendido. Não ficamos. Só depois do término do período sagrado, a beijei. Hoje eu a amo”, declarou-se o apaixonado Mohamed, que carrega no pulso da mão esquerda, o tasbih – espécie de terço islâmico.

Além do amor, ele reforça, seu único desejo é se tornar campeão do UFC. “Só penso nisso. Afinal…. É tudo nosso, nada deles, nada deles, tudo nosso. É tudo nosso, é nada deles”, canta Mohamed, que se revela, além, é claro, de fã de reggae, um admirador do pagode baiano: “Curto Igor Kanário, Harmonia, Pisirico…”

E depois de tantas aventuras, mudança de país, esporte e família, como não dizer a Mohamed Camara que, realmente, o mundo não é “todo dele”?