As mentiras que enterram o governo Dilma
De tanto repetir que está sendo “vítima de um golpe”, é possível que a presidente Dilma Rousseff hoje acredite que isso seja verdade. De tanto tentar desqualificar seus opositores e afirmar que, uma vez no poder, eles acabarão com os programas sociais instituídos no País nas últimas décadas, não é improvável que se julgue estar de fato defendendo direitos alheios. Dilma, dessa forma, revela que pode ter sido vítima, sim, mas da estratégia petista de tentar se perpetuar no poder através da propagação incessante de falácias. Numa versão contemporânea do antigo ditado que diz que uma mentira repetida infinitas vezes acaba se tornando verdade, os defensores da presidente decidiram adotar em sua defesa a tática de usar, em todas as aparições públicas de Dilma, Lula ou de qualquer de seus principais quadros, o mesmo discurso descolado da realidade que, ao invés de contrapor as acusações com fatos, cria um cenário ilusório e ofende outros poderes constituídos. O grande problema dessa estratégia é que, como um castelo de cartas, ela é frágil e pode ser facilmente derrubada com a verdade. Na semana passada, diante da insistência de Dilma em pregar com argumentos falsos, surgiu uma série de decisões judiciais, declarações e notas desmontando a sua versão.
São incontáveis as vezes em que Dilma procedeu como na segunda-feira 18, dia seguinte à votação na Câmara dos Deputados que decidiu por autorizar o Senado a instaurar o processo de impeachment.
Num pronunciamento seguido de entrevista coletiva no Palácio do Planalto, a presidente disse que acompanhou todas as declarações dos deputados que votaram a favor do seu impedimento e que quase nenhum deles usou como justificativa o cometimento de crime de responsabilidade, o enquadramento legal reservado aos governantes que desrespeitam a Lei de Responsabilidade Fiscal. “A Constituição estipula que é necessária a existência do crime de responsabilidade para que um presidente possa ser afastado do cargo. Recebi 54 milhões de votos e me sinto indignada”, afirmou. Mais uma vez, a presidente recorreu à artimanha de se apresentar como vítima de um golpe. “Estou tendo meus direitos torturados.”
Torturados, nesse caso, foram os fatos. Intencionalmente, Dilma ignorou um processo legal, respaldado na mesma Constituição que ela reivindica para desqualificá-lo. Um processo que tramitou na Câmara, obedecendo prazos legais e deu a seu defensor, o advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, a oportunidade de expor os argumentos do governo contra as acusações que pesam contra ela. Um processo que, às vésperas de ir à votação em plenário, foi questionado, sem êxito, no Supremo Tribunal Federal (STF). A chefe do Executivo desconsiderou, ainda, uma votação encerrada com folgada margem pró-impeachment. Durante a entrevista no Planalto, a presidente falou que tem certeza de que os deputados sabem que ela não cometeu crime de responsabilidade. Essa não foi a conclusão do Tribunal de Contas da União, instituição auxiliar do Parlamento. Os ministros do TCU consideraram, por unanimidade, que a presidente Dilma Rousseff incorreu nas “pedaladas fiscais” para atrasar repasses a bancos públicos a fim de cumprir as metas parciais da previsão orçamentária. Fez isso em 2014 e insistiu em 2015.
Em vez de aceitar o que a realidade lhe impõe, a mandatária criou o hábito de atacar adversários. Então, misturou fatos com ilações. Um dos alvos foi o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). “(Ele) tem um retrospecto que não o abona para ser juiz de nada, abona para ser réu”. É fato: existem contra Cunha graves acusações no Petrolão, mas isso é problema para seus pares e para o Supremo Tribunal Federal (STF). Dilma também dirigiu críticas ao vice-presidente, Michel Temer. Em um texto divulgado nas redes sociais anterior à votação do processo de impeachment, a petista acusou Temer de querer acabar com programas sociais. “Querem revogar direitos e cortar programas sociais como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida’, afirmou. É ilação. O PT usa, com frequência, como arma política a acusação de que adversários irão acabar com os benefícios sociais. Fez isso na última campanha presidencial, quando desconstruiu a candidatura de Marina Silva (Rede). Temer já deu inúmeras declarações públicas defendendo esses benefícios.
A presidente repete à exaustão que não há acusações contra ela, numa referência à Operação Lava-Jato. “Meu nome não está em nenhuma lista de propina. Tampouco sou suspeita de qualquer delito contra o bem comum”, afirmou. Pode-se chamar esse discurso de meia-verdade. Se não há, de fato, indícios de enriquecimento, existem nas investigações que apuram corrupção na Petrobras depoimentos de delatores afirmando que Dilma sabia do Petrolão e indicando o uso de propina em suas campanhas. O senador Delcídio do Amaral (MS), ex-líder do governo, implicou a petista na tentativa de barrar a investigação. De acordo com Delcídio, Dilma teria nomeado o ministro Marcelo Navarro para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) com a missão de liberar empreiteiros presos pela Polícia Federal. A presidente e o ministro Navarro negaram a existência de qualquer acerto escuso. O senador acusou o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, de tentar convencê-lo a não fechar a delação, oferecendo inclusive ajuda financeira. Não teria sido uma ação isolada do ministro, mas uma ação coordenada pelo Planalto. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, enviou ao ministro Teori Zavascki, do Supremo, o conteúdo da delação premiada de Delcídio para que seja avaliada a abertura de inquérito contra Dilma. Interferir em investigações é crime. Na quarta-feira 20, Zavascki, numa demonstração de que o teor dos depoimentos de Delcídio teria respaldo nos fatos, decidiu anexar trechos da delação que fazem citações a Dilma, Temer e Lula no principal inquérito da Lava Jato.
Lula quer desqualificar o impeachment. Na lógica petista,
uma mentira contada muitas vezes se torna verdade
A estratégia de tentar desqualificar o processo de impeachment ganhou agora uma versão internacional. Dilma decidiu levar sua tese de “golpe” para um discurso na ONU. Ainda no Brasil, disse a jornalistas estrangeiros que, por trás da tentativa de impedimento, estaria o objetivo de um grupo de chegar à Presidência sem ter que se submeter à vontade popular. “É (o processo de impeachment) a maior fraude jurídica e política da história do País”, afirmou. A verdade é que não há ilegalidades no processo de impeachment. A Constituição prevê a possibilidade de cassação quando o governante comete crime. A presidente atenta contra os outros poderes quando diz que o processo é ilegal. Coube ao ministro Celso de Mello, decano do Supremo, afirmar na quarta-feira 20 que a presidente chamar o processo de impeachment de golpe é “gravíssimo equívoco”. O ministro Gilmar Mendes disse que o quadro é de “normalidade”. Além disso, Dilma esquece que o PT foi o partido que mais lançou mão do instrumento, em mandatos anteriores, contra presidentes então no cargo.
Além das reações no Judiciário, as ilações de Dilma provocaram repúdio de parte majoritária do Legislativo. Em nota, 15 partidos que apoiaram a abertura do processo de impeachment acusaram a presidente de “encenar” para a imprensa estrangeira que é vítima de um golpe. Apoiado por presidentes e líderes de legendas como o PMDB, o PSDB, o DEM e o PSB, o comunicado afirma que Dilma “inverte sua posição de autora em vítima” e repudia “o “triste espetáculo” protagonizado pela presidente. Os oposicionistas alegam que, ao tachar a decisão de golpista, Dilma omite que o rito da tramitação do processo de impeachment foi “chancelado” pelo STF. Entidades que representam procuradores e advogados públicos federais repudiaram a utilização da estrutura da Advocacia-Geral da União para fins partidários. Sem mencionar o nome do ministro José Eduardo Cardozo, da AGU, os servidores criticam a atuação dele por se manifestar classificando como “golpe” o processo de impeachment. “Não é possível admitir que o advogado-geral da União desvirtue o exercício da função atribuída à instituição e atente contra atos praticados por outros Poderes da República”, diz o texto das entidades.
Com o avanço do processo de impeachment, que nesta semana começa a ser analisado pelo Senado, a presidente tenta empurrar a opinião pública contra seus adversários. “Os golpistas já disseram que será necessário impor sacrifícios à população”, afirmou. Mas a própria Dilma já reconheceu a necessidade de o País adotar um severo ajuste fiscal. No início do segundo mandato, ela colocou Joaquim Levy no ministério da Fazenda para promover um pacote de austeridade. Não só não cumpriu o que prometeu como aumentou gastos públicos, sobretudo na liberação de verbas que objetivavam cooptar parlamentares a votar em seu favor. E os poucos cortes efetuados atingiram, diferentemente do que alega Dilma, programas de cunho social como o Pronatec, uma de suas bandeiras eleitorais.
Desesperado para tentar embolar o impeachment no Senado, o governo tenta agora mais uma de suas manobras diversionistas. Senadores governistas conseguiram reunir 27 assinaturas e apresentaram na terça-feira 19 uma proposta de emenda constitucional para a convocação de novas eleições presidenciais. Nenhum dos oposicionistas aderiu. O próprio governo sabe muito bem que não tem a menor chance de isso passar entre os senadores e muito menos entre os deputados. De acordo com parlamentares ouvidos por ISTOÉ, trata-se de uma “cortina de fumaça”. Petistas e alguns apoiadores de esquerda optaram por essa estratégia como uma tentativa de reforçar a tese de “golpe”, com que tentam rotular o processo de impedimento que conta com apoio regimental da Câmara e tem o Supremo como árbitro. O curioso é que esta ideia “republicana” de dar voz aos eleitores novamente só surgiu após a entourage da petista tentar de tudo para evitar o afastamento de Dilma e ainda assim perder a votação no domingo 17.
Rolando lero
José Eduardo Cardozo joga com as palavras para defender o indefensável
O advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, se esmera em defender o indefensável. Mal terminara a aprovação do processo de impeachment na Câmara, ele já concedia entrevistas desqualificando a Casa. Cardozo, mais uma vez, rompeu o seu papel institucional. Disse que os deputados tomaram uma decisão “absolutamente política”. Esqueceu-se que, se Dilma Rousseff não tivesse cometido crimes de responsabilidade, não sofreria processo algum. O fato é que ela infringiu a lei ao cometer as chamadas pedaladas fiscais e ao emitir decretos sem autorização do Legislativo. Mas Cardozo foi além. Afirmou que a decisão era golpista. “Um golpe na democracia, um golpe nos 54 milhões de brasileiros que elegeram a presidenta Dilma, um golpe numa Constituição que foi fruto de uma conquista histórica do povo brasileiro depois da ditadura de 1964”, disse. Antidemocrático é querer desqualificar o voto de 367 deputados. O que beira o golpismo é dizer que um processo de cassação que teve o rito aprovado pelo STF viola a Constituição. Cardozo só não parece achar errado usar a estrutura de um órgão como a AGU, que deveria zelar pelo patrimônio do Estado, para defender uma presidente acusada de prejudicar os cofres públicos. Quem responde a crimes não é a figura institucional da presidência da República, é a pessoa física Dilma Rousseff. Cardozo não deveria usar o cargo para defendê-la. Nem provocar crises institucionais.
ESTADÃO