Negras brasileiras sofrem com racismo até quando vão comprar maquiagem
Em um país em que mais da metade da população é composta por negros (54%, segundo o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a exclusão racial ainda é realidade em diversas esferas da sociedade –e no mercado de beleza, principalmente no de maquiagem, não é diferente. “O racismo e o descaso com que consumidoras negras são tratadas quando compram itens de beleza é imenso”, diz Rosalia de Oliveira Lemos, doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal Fluminense e professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro.
Mesmo que algumas marcas tenham levantado a bandeira da diversidade nos últimos anos –principalmente, como estratégia de marketing–, a situação permanece problemática. “Sinto o preconceito diariamente. A simples compra de uma base se transforma em um martírio para mim. Sempre tentam me empurrar uma cor que não se adequa ao meu tom de pele”, conta Rosalia. A história se repete com Bruna Cristina Jaquetto Pereira, coordenadora do Grupo de Estudos Mulheres Negras/UnB, de Brasília. “Vivemos em uma sociedade racista em que mulheres brancas são consideradas o único padrão de beleza, e as negras, invisibilizadas”, diz.
Vergonha de se maquiar
Já ouviu falar em “make up shaming”? A expressão, definida como o ato de fazer uma pessoa se sentir culpada por se maquiar, popularizou-se depois que a youtuber norte-americana Nikki Tutorials publicou uma série de vídeos para criticar a atitude e mostrar o impacto positivo da maquiagem na autoestima das mulheres. “Todas sofrem com o ‘make up shaming’, mas as negras muito mais”, afirma Bruna.
Acusações de que elas estão tentando clarear a pele são comuns nas redes sociais e em fóruns da internet. “Esse pensamento é equivocado e contraditório. Acusam a negra de querer embranquecer, mas a maior parte das maquiagens fica clara no rosto dela. A indústria cosmética deixa como única alternativa usar um produto clareador, e depois a mulher é a culpada.”
A pesquisadora critica não apenas a falta de diversidade de tonalidades, mas o nada agradável efeito acinzentado que boa parte das bases e corretivos deixam na pele. “Geralmente, mulheres negras têm fundo da pele amarelado. Se a base escolhida tiver um fundo rosado, não tem jeito, ela vai ficar cinza. Esse problema é comum por dois motivos: ou a marca não oferece o tom apropriado ou o maquiador não sabe preparar pele negra. Então, cabe ao profissional estudar mais e às empresas ampliarem sua cartela”, analisa Leila Turgante, maquiadora da agência Capa MGT, de São Paulo.
“A cartela de uma marca precisa ser ampla porque a pele é complexa. Essa coisa de três tons, claro, médio e escuro, está mais do que ultrapassada. Respeitar a diversidade de tons, suas intensidades e temperaturas, é primordial”, fala Fabi Gomes, maquiadora sênior da M.A.C. Segundo ela, a dica é sempre testar o produto no colo e experimentar quantas bases forem necessárias até ter certeza de que encontrou a ideal. “É muito difícil acertar de primeira. Escolha com calma e jamais tenha uma amiga ou uma celebridade como referência. Cada pele é única”, ensina.
Falta visão ao mercado
Não foram poucas as vezes em que a maquiadora Leila Turgante presenciou o despreparo de certas marcas em relação à diversidade de tons. “Uma vez, fui fazer um workshop de automaquiagem para mulheres carentes, patrocinado por uma grande marca internacional. Os tons mais escuros da tal marca não chegavam nem perto da cor de pele das meninas. Tive que ir até uma loja e comprar outros produtos. Foi surreal”, conta.
Em muitos casos, a escassez de bases, principalmente envolvendo marcas de luxo, deve-se à crença de que mulheres negras não têm condições financeiras para comprar itens de beleza de alto custo e, portanto, não constituem um nicho rentável. “Tem-se como expressão do racismo a ideia de que o lugar das pessoas negras é a pobreza. A falta de diversidade de tons só mostra que, para muitos, negros não podem pertencer às camadas médias e altas da sociedade”, afirma Bruna.
Esse pensamento não poderia estar mais errado: um levantamento feito pela revista “Essence” mostrou que as afro-americanas gastam US$ 7.5 bilhões anualmente em produtos de beleza, o equivalente a mais de R$ 24 bilhões. Esse achado veio à tona no painel de discussão “Smart Beauty V: A Revealing Look at the Mindset of Passionate African-American Beauty Consumers” (“Beleza Inteligente V: Um Olhar Revelador sobre a Mentalidade das Consumidoras Entusiastas de Beleza Afro-Americanas”, em tradução livre), organizado pela revista. A pesquisa também revelou que as afro-americanas são grandes consumidoras de itens de grifes aspiracionais, como Chanel e Versace, principalmente porque procuram produtos de marcas confiáveis, de qualidade e que reflitam seu estilo.
“Esse é um exemplo claro de ‘miopia de marketing’, fenômeno que acontece quando a indústria não tem visão do mercado em que atua”, observa Alcidney Sentallin, professor de Gestão Financeira da IBE-FGV e consultor de negócios, de São Paulo. Para Regina Diniz, analista do Sebrae e coordenadora da carteira de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos, permitir que essas mulheres se sintam representadas na mídia não resolveria a questão, mas já seria um grande avanço.
“A indústria faria muito por elas se incluísse mais negras em suas campanhas publicitárias e fizesse com que elas se vissem na televisão e nas páginas de revistas”, argumenta. De acordo com Bruna Pereira, mesmo quando empresas elegem negras como garotas-propaganda, elas têm a pele mais clara, como as cantoras Beyoncé e Rihanna. “A ‘mulata’ sempre foi mais palatável aos olhos de sociedades racistas. Pode observar que nas propagandas sempre há apenas uma negra, escolhida justamente para passar a ideia de representatividade. É como se existisse uma gama de mulheres brancas, mas apenas um tipo de mulher negra –geralmente, de pele clara”, denuncia.
Sentallin acredita que o caminho para a inclusão racial está na mudança de visão das grandes empresas. “As negras têm necessidades não atendidas e um imenso desejo de se afirmar com orgulho de sua raça. Falta às marcas investimento em pesquisas e o entendimento de que esse é um nicho inexplorado e repleto de possibilidades. Quando isso acontecer, teremos dado um grande passo.”