Taxa de homicídios na Bahia dobra em dez anos, aponta levantamento
Uanderson dos Santos, 19 anos. Thiago dos Santos Gomes, 29. Matheus Santos Paim, 23. Vitor Alexandre da Silva Macena, 19. José Vitor Santos Conceição, 18. Saimon Gabriel Melo da Silva, 23. S.J.A., que, aos 15 anos, não viveu o suficiente para ter mais do que as iniciais de seu nome divulgadas pelas autoridades públicas.
A lista poderia continuar. Esses são apenas alguns dos jovens que foram mortos neste mês de junho, em Salvador e Região Metropolitana. Em dez anos, a taxa de homicídios na Bahia quase dobrou: cresceu 97,8% entre 2006 e 2016, de acordo com o Atlas da Violência 2018, divulgado nesta terça-feira (5) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Mais uma vez, a Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP) contestou os números do levantamento e disse que a metodologia desfavorece os estados nordestinos ao não levar em consideração que eles “contam as ocorrências usando uma metodologia mais fiel à realidade” (leia mais abaixo).
Entre dados alarmantes divulgados pelo novo Atlas da Violência, um destaque: o número de jovens mortos. O estudo indica que, em dez anos, o Brasil sofreu aumento de 23,3% no número de homicídios de jovens (pessoas com idades entre 15 e 29 anos). Em 2016, foram 33.590 jovens foram assassinados – desses, 94,6% são homens. A Bahia está entre os cinco estados em que os jovens do sexo masculino mais morrem – houve um crescimento em torno de 20% entre 2015 e 2016.
Aqui, a taxa é de 218,4 jovens do sexo masculino mortos para cada 100 mil habitantes – no país, a taxa é de 122,6/100 mil. Quando são observadas as mortes de jovens em geral, sem distinção por gênero, a Bahia ainda tem números maiores do que a média nacional: 114,3 contra 65,5 para cada 100 mil habitantes.
Para o pesquisador do FBSP Renato Sérgio de Lima, um dos integrantes do grupo que conduziu o estudo, a situação é uma “catástrofe”. Segundo ele, o Brasil não consegue pensar em uma política de prevenção à violência contra os jovens que seja verdadeiramente eficiente. Pelo contrário: o país insiste em um modelo de política criminal e penitenciária – que faz com que os jovens sejam as principais vítimas e os principais autores.
“Quando a gente vê, a única política para o jovem é a prisão. É fundamental pensar em como a gente faz a prevenção, que é de geração de áreas de melhor convívio, aumentar a escolarização, políticas sociais, políticas mais amplas. Essa (prevenção) tem sido tentada, mas não existem projetos que sejam, de alguma forma perenes, para pensar a prevenção terciária”, diz.
Ele explica que essa falta de prevenção terciária significa dizer que tem se prendido jovens como nunca – e deixado que eles sejam recrutados por facções criminosas – mas não se tem oferecido absolutamente nada no lugar.
“Não conseguimos oferecer nenhum tipo de alternativa para aqueles jovens, que são estigmatizados, não têm emprego, são o ‘nem nem’ – nem estuda nem trabalha. É o abandono da juventude por parte das políticas públicas”. Além disso, nas penitenciárias, o tratamento é igual. “Claro que os crimes que são numericamente maiores vão gerar mais presos, que são os ligados aos pequenos traficantes. Não se investiga adequadamente, não prende homicidas, estupradores, quem comete crimes violentos. Prende quem não precisa e não prende quem precisa ficar preso”, destaca.
Taxa de homicídios
Nada está tão ruim que não possa piorar. Segundo o levantamento do Ipea, a taxa de homicídios para cada 100 mil habitantes na Bahia quase dobrou nos últimos dez anos. De acordo com o Atlas o crescimento foi de 97,8% na comparação entre 2006 e 2016.
A taxa na Bahia, em 2016, foi de 46,9 para cada 100 mil habitantes, 18,7% a mais que em 2015. Há dez anos o percentual era de 23,7 para cada 100 mil/h.
O número coloca o estado na sétima posição no ranking dos mais violentos ficando atrás apenas de Sergipe (64,7), Alagoas (54,2), Rio Grande do Norte (53,4), Pará (50,8), Amapá (48,7), e Pernambuco (47,3).
Para o presidente da ONG Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta, Hamilton Borges, os números reafirmam uma realidade que acontece no estado há anos.
“Esses dados se repetem e se acumulam desde 2007. Negros, pobres e semianalfabetos são sempre as principais vítimas. Aumenta o contingente de mortes, mas a realidade ainda é a mesma. Temos um problema sério de segurança pública que não será resolvido com rodas de conversas ou com rondas policiais”, afirma.
Em números absolutos, em 2006 foram registrados 3.311 homicídios na Bahia, enquanto em 2016 esse número passou para 7.171, o que representa um aumento de 116,6%. Na comparação com o ano anterior, em 2015, o crescimento foi de 19,3%, com 6.012 crimes desse tipo.
No Brasil foram registrados 62.517 homicídios no ano de 2016, e 553 mil mortes intencionais nos últimos dez anos. Segundo o Atlas, os dados são do Ministério da Saúde (MS), equivale a 30,3 mortes para cada 100 mil/H. Pela primeira vez na história o país superou o número de 30 mortes para cada 100 mil/H. O percentual corresponde a 30 vezes a taxa da Europa.
Armas
O índice de mortes provocadas por armas de fogo no Brasil permanece o mesmo de 2003, cerca de 71,1% dos casos, o que aproxima os brasileiros de países como El Salvador (76,9%) e Honduras (83,4%) e afasta da média de países da Europa (19,3%).
A pesar dos números, o estudo destaca a importância do Estatuto do Desarmamento Brasileiros e que se não fosse essa lei, os homicídios teriam crescido 12% além do observado no país.
Em números absolutos, a Bahia registrou 5.449 mortes por arma de fogo em 2016, sendo que em 2006 foram registrados 2.402 casos. O crescimento foi de 126,9%. Na comparação com 2015, quando 4.555 pessoas morreram, o aumento foi de 19,6%. Os baianos lideram o ranking, ficando à frente de estados como Rio de Janeiro (4.019) e São Paulo (2.720).
Quando o assunto são as taxas de mortes para cada 100 mil habitantes a situação não é menos preocupante. Segundo o Atlas, em 2006 o índice na Bahia era de 17,2, enquanto em 2016 esse percentual saltou para 35,7.
Medidas concretas
Para a coordenadora de Pesquisa, Políticas e Advocacy da Anistia Internacional no Brasil, Renata Neder, as autoridades devem priorizar na agenda pública a redução de homicídios.
“Mas, além das medidas concretas para reduzir homicídios, o estado pode ter um papel central na promoção de uma cultura de paz, na mediação e resolução de conflitos, e na educação em direitos humanos. Além disso, campanhas de combate ao racismo são essenciais. A morte do jovem negro é naturalizada e aceita por uma parcela da sociedade porque ela não vê esse jovem negro como um sujeito de direitos, mas sim como algo descartável”.
Segundo ela, as principais medidas a serem adotadas incluem o investimento na investigação de homicídios. “Mais de 90% dos homicídios não são investigados. Essa não investigação impede que se conheça mais a fundo o contexto em que os homicídios acontecem e isso impede o desenho de políticas públicas especificas adequadas. Além disso, esse quadro de impunidade alimenta o ciclo de violência”.
Ela cita, ainda, a adoção de medidas para o maior controle sobre o uso de armas de fogo; políticas afirmativas para a juventude negra nas favelas e periferias e medidas efetivas de controle do uso da força pela polícia. “Uma polícia violenta que age na ilegalidade só alimenta o ciclo de violência. É fundamental reduzir a letalidade da polícia e garantir que ela use a força letal apenas quando estritamente necessário”, pontua Renata.
Dados diferentes
O Atlas da Violência é feito com base nos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde em cada estado – esses dados são alimentados pelas secretarias estaduais de saúde, que, por sua vez, recebem as notificações das pastas municipais. Esses dados são diferentes, portanto, dos dados divulgados pela Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP-BA).
Os dados da saúde – que são utilizados para a implementação de políticas públicas na saúde – costumam ser escolhidos por organizações que conduzem esse estudo porque, na área da segurança pública, não existe nenhum sistema unificado nacionalmente como o SIM. A metodologia é alvo de críticas da SSP.
“A melhor forma de lidar com essa discussão é a transparência. Criticar o mensageiro não vai resolver o problema. O Fórum e o Ipea têm feito um trabalho muito grande para a qualificação (dos dados). A sociedade precisa estar informada, até para diminuir a sensação de medo no país”, afirma o pesquisador Renato Sérgio de Lima, do FBSP.
Na saúde, os homicídios podem estar entre as chamadas Mortes Violentas por Causa Indeterminada (MVCIs), que ainda incluem suicídios, acidentes fatais, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte. No Atlas, inclusive, os pesquisadores apontam que o número de MVCIs é “preocupantemente alta” em cinco estados – um deles seria a Bahia (que só fica atrás de Minas Gerais). Segundo os pesquisadores, isso poderia contribuir para diminuir a taxa de homicídio oficialmente registrada.
No entanto, de acordo com a diretora de vigilância do serviço de verificação de óbito da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab), Márcia Mazzei, o problema começa no preenchimento da declaração de óbito. Vindas do Instituto Médico Legal (IML) ou dos hospitais, em muitas delas, a causa da morte não é apontada pelos legistas.
“A declaração do óbito vem muito com a descrição da lesão. Pode ter lá ‘perfuração por arma de fogo’, que é importante saber para garantir assistência às pessoas, mas para fins de saúde pública, o que interessa é a circunstância da morte. Se foi suicídio, se foi homicídio”.
Ela explica que, ao longo dos anos, o preenchimento chegou a melhorar. A Sesab faz trabalhos em conjunto com o IML e com o Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), mas ainda não tem sido suficiente. Essas informações são importantes para pensar em políticas que vão desde o número de leitos disponíveis nas unidades de saúde até na formação de equipes cirúrgicas.
“Os legistas alegam que essa é uma informação policial e não do legista. Eles dizem que são formados para descrever os achados de necropsia, só que essa informação da polícia tinha que estar anotada no atestado. Tem campos para isso”, diz.
É para reduzir esses problemas que a Sesab treina os chamados ‘codificadores’ – são pessoas ligadas à prefeitura, geralmente às secretarias municipais de saúde, que deve ir até o IML ou ao hospital e colher mais informações sobre as circunstâncias morte, para corrigir o problema. Só que ela reconhece que isso não tem acontecido da melhor forma.
O órgão já treinou mais de 200 codificadores em todo o estado – e, segundo Márcia, já houve treinamentos em todas as cidades com mais de 50 mil habitantes. Agora, a meta é incluir aquelas que tem a partir de 20 mil habitantes.
Além disso, desde o ano passado, a Sesab faz parte de um grupo de trabalho que inclui, ainda, SSP e outras secretarias estaduais. O objetivo é criar um serviço de notificação unificado.
SSP questiona dados do Atlas da Violência
O secretário de Segurança Pública da Bahia, Maurício Barbosa, lamentou em nota que, por mais um ano, os estados nordestinos figuram sempre como mais violentos do país, mas questionou a metodologia usada pelo Instituto. Ele apresentou números da própria SSP referente a 2017 que mostram redução na criminalidade, e disse que o combate de armas precisa ser feito também nas fronteiras.
“Na avaliação da SSP, as mortes por arma de fogo, no Brasil, são reflexo da falta de uma política nacional de segurança, com ausência de combate à entrada de armas através das fronteiras. Em 2018 a polícia baiana, nos quatro primeiros meses, chegou a uma média de 22 armas apreendidas por dia”, diz a nota.
Segundo os dados da SSP, no ano de 2017, comparando com 2016, a Bahia alcançou a redução de 5,2% nas mortes violentas. De 2015 para 2016, em Salvador, os crimes contra a vida caíram 3,1% e, no estado, houve um aumento de 12,4%. O órgão atribui a redução dos números a investimentos feitos na contratação de novos policiais, e entregas de novas estruturas, uma delas o Centro de Operações e Inteligência.
No que tange a morte de jovens, a SSP pediu uma maior participação dos municípios para propor ações sociais que ofereçam novas perspectivas, como mais oportunidades de emprego para evitar que os adolescentes se envolvam com o tráfico de drogas. “Os jovens que mais morrem são também os que mais matam”, diz a nota.
No que diz respeito à morte de negros, a SSP disse que está analisando os dados do período divulgado, tomando como base a faixa de população negra do estado, de 76%, a maior do país