A orientação feita a uma mulher portadora do vírus HIV durante um culto quase teve consequências mais graves em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Ela afirma que um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, no bairro de Agostinho Porto, orientou que o tratamento fosse interrompido e ela parasse de tomar os remédios.
X., de 38 anos, começou a frequentar a igreja há quatro meses. Descobriu o vírus em 2012, durante o pré-natal da primeira gravidez. Desde então, faz tratamento.
Prima de X., Manoelina da Conceição, de 52 anos, só descobriu que ela não estava tomando os remédios quase um mês depois.
— Ela contou que tinha sido convidada para receber oração. Depois, veio uma mulher da igreja pedindo o exame dela de carga viral. Entreguei sem maldade nenhuma. Mas o pastor colocou na cabeça dela que ela estava curada — conta Manoelina.
Sem tomar remédios por um mês, X. acabou ficando debilitada. Manoelina só soube do caso porque a prima pediu outros exames.
— O pastor pediu que eu fosse à catedral, em Del Castilho, dar meu testemunho. Chegaram a me levar de carro, mas queriam que eu levasse todos os exames e prontuários — conta X., que chegou a jogar os comprimidos fora.
O exame de sangue de X. deu “não detectado” para a carga viral. O médico Roberto Falci Silva Garcia, professor de Infectologia e Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Iguaçu (Unig), disse que é comum que as pessoas confundam esse resultado com o sumiço da doença, mas ressalta que não há cura:
— O exame tem uma taxa de detecção. Abaixo de 40 cópias do vírus, dá indetectado. Mas é preciso que o paciente continue o tratamento. Caso interrompa, as poucas cópias indetectáveis podem tornar a se proliferar, fazendo com que a doença volte a se manifestar.
Para combater a falta de informação, a Pastoral da Aids, da CNBB, vai promover o primeiro Seminário Estadual de Aids e Religiões, de 31 de agosto a 2 de setembro, em Itaipu, Niterói. Vão participar do encontro religiosos candomblecistas, católicos, kardecistas, protestantes e umbandistas. A coordenadora da pastoral, Lúcia Souza, disse que em três anos a pastoral registrou cinco mortes de pacientes que abandonaram o tratamento por orientação de igrejas:
— Quando eles ficavam com carga viral indetectável, o pastor falava que tinham sido curados. Mas a Aids não tem cura, só tratamento.
Lideranças religiosas alertam sobre doenças
Na cidade, religiosos opinaram sobre o caso da paciente. Para Marilena Mattos, dirigente espiritual da Casa de Cláudia — que realiza tratamentos espirituais — a religião deve ser aliada à medicina:
— Nenhuma religião vai curar e sim ajudar a passar por aquilo. A ajuda espiritual é em comunhão com o tratamento da terra.
O pastor Onofre da Silva, da Assembleia de Deus, no Jardim Metrópole, acredita que tenha sido um ato de imaturidade do pastor:
— Foi impensado. Deus não move um dedo para coisas que eu posso fazer, como tratar da minha matéria, por exemplo.
Pároco da Igreja da Matriz, em Meriti, frei Luiz Colossi avalia o caminho ao qual a crença no milagre pode levar:
— O milagre no âmbito religioso, muitas vezes, se transforma em indústria de interesses financeiros.
O Fórum de Saúde Meriti lança hoje a campanha “Aids: ter fé é aderir ao tratamento”, no Facebook. Também serão colocados cartazes em postos de saúde e igrejas. A ideia é alertar pacientes e religiosos que a religião cuida do espiritual e a medicina, trata a doença.
— Quando a pessoa abandona o tratamento e retorna, isso gera um custo. E quem paga são os usuários do SUS — explica Alecir de Jesus, coordenador do fórum.
A assessoria da imprensa da Igreja Universal do Reino de Deus não respondeu até o fechamento desta edição.