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29 November 2024

Projeto anticrime de Moro dá “licença para matar” a policiais, diz ex-secretário-executivo do Ministério da Justiça

“Projeto de Lei Anticrime”, um pacote de medidas apresentado por Sérgio Moro à sociedade na última segunda-feira, dia 4 de fevereiro, vai piorar substancialmente os casos de violência policial entre nós.

Sem considerar as evidências empíricas nem debater com a sociedade, em uma das medidas o ministro propõe que um juiz possa liberar de punição o policial que matar alguém alegando medo, surpresa ou violenta emoção.

Desde a ditadura, a violência policial é uma chaga em nosso país. De maneira recorrente somos surpreendidos com flagrantes de agentes do Estado atuando como criminosos ao invés de agirem no estrito cumprimento da lei, praticando tortura, extorsão e homicídio!

Embora seja um problema concentrado em uma parcela dos policiais — sempre importante lembrar que a maioria age dentro da lei —, suas consequências são extremamente graves para a sociedade. Causam muita dor e sofrimento, especialmente às famílias mais pobres. Suas principais vítimas são jovens negros.

Para se ter uma ideia da dimensão do problema, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as mortes decorrentes de intervenção policial não pararam de crescer nos últimos anos, chegando a 5.144, crescimento de 20% se comparados os números de 2017 e 2016.[1]

O Relatório Mundial da Human Rights Watch de 2018 apontou problemas crônicos do nosso sistema de justiça criminal: execução extrajudicial cometida pela polícia, maus-tratos aos presos e outros problemas que contribuem para aumentar o ciclo de violência em nossa sociedade.

Não é à toa que, desde 2012, a sociedade civil luta para aprovar no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 4.471/2012, que determina a investigação de todas as mortes decorrentes de intervenção policial, cabendo às autoridades preservar a cena do crime e instaurar inquérito policial para isso.[2] Pode parecer óbvio exigir que uma morte decorrente de intervenção policial seja investigada, mesmo assim o projeto enfrentou toda sorte de obstáculos e encontra-se engavetado no Plenário da Câmara dos Deputados.

Isso ocorre porque, na maioria dos estados brasileiros, agentes públicos utilizam uma série de artifícios para não investigarem mortes decorrentes de intervenção policial: não se preserva a cena do crime, não se realiza perícia e recebem-se alegações dos policiais envolvidos na intervenção como verdades absolutas, mesmo diante de evidências claras de execução.

Outro artifício utilizado é a não abertura de inquérito nos casos em que o policial alega que houve resistência à abordagem — quando é lavrado o famoso auto de resistência, atualmente um verdadeiro atestado da impunidade em todo país.

A impunidade é um salvo-conduto para que maus policiais continuem matando de forma desenfreada.

A violência policial geralmente é concentrada. Dados recentes sobre a situação no Rio de Janeiro e de São Paulo — como o caso do 41º Batalhão de Polícia Militar do Rio de Janeiro, insistentemente denunciado pela vereadora Marielle Franco. Somente este Batalhão responde por 12% das mortes resultantes de intervenção policial num universo de 41 Batalhões.[3] Já em São Paulo, pode-se destacar a atuação ilegal e histórica das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, a Rota, e do 41º Batalhão Metropolitano da Polícia Militar.[4]

Além do sofrimento imposto a milhares de famílias, em sua maioria pobres e negras, e dos danos causados à imagem das instituições policiais, essa brutalidade coloca em risco a vida dos próprios policiais devido ao ciclo de violência a que dá origem, conforme ressaltado no Relatório 2018 da Human Rights Watch.

Essa prática criminosa é estimulada pela certeza de impunidade por parte desses agentes públicos. Alguns atuam livremente e até mesmo se organizam como grupos de extermínio e milícias, usando a farda para subjugar a população e praticar uma série de crimes.

A força desses grupos é cada vez maior — e isso deveria preocupar todas as instituições públicas: é alarmante o número de mortes e intimidações que vêm promovendo contra a população e até mesmo contra autoridades, como a execução da juíza Patrícia Acioli e, ao que tudo indica, da vereadora Marielle Franco ou como as constantes ameaças à vida do hoje deputado federal Marcelo Freixo, que foi relator da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as milícias no Rio de Janeiro na Assembleia Legislativa do estado.[5]

Essas organizações criminosas seguem avançando impunemente sobre o Estado e hoje sua influência sobre o Poder Legislativo é indiscutível. A proposta apresentada por Sérgio Moro é um péssimo sinal de que o governo federal não está disposto a enfrentar este problema. Mais do que isso, é um sinal inequívoco de que o governo não se importa com as milhares de vidas de jovens inocentes mortos em razão de sua raça ou de sua classe social.

Marivaldo vai além da crítica à medida de Moro: “Essa medida só reforça as suspeitas sobre a relação do Governo com policiais que atuam à margem da lei” – Foto: Mídia Ninja

Essa medida só reforça as suspeitas sobre a relação do governo com policiais que atuam à margem da lei. Denúncias recentes apontaram que o então deputado Flávio Bolsonaro, filho do presidente, mantinha nomeados em seu gabinete dois assessores parentes de um foragido chefe de milícia. O motorista de Flávio e amigo do presidente, Fabrício Queiroz, possui em sua ficha vários autos de resistência e é suspeito de participar de uma das milícias mais perigosas do Rio de Janeiro — além do escândalo dos depósitos.[6]

Historicamente, Jair Bolsonaro sempre se manifestou em defesa da violência policial, defendendo abertamente a atuação de milícias e de grupos de extermínio.[7]

O que surpreende é ver o ministro da Justiça, um ex-juiz, conhecedor da Constituição, cuja fama está relacionada ao enfrentamento da criminalidade, encampar uma medida que fortalece e legitima a prática de crimes em todo o país.

  • Se não é sensível às evidências empíricas, sugiro ao ministro que ao menos conheça a dor das milhares de mães que tiveram seus filhos executados por aqueles que, em tese, deveriam protegê-los.