Aliadas a cooperativas de seguros, milícias faturam com a recuperação de veículos roubados
Escrita em cartazes de propaganda de cartomantes, a promessa “trago a pessoa amada em três dias” ganhou uma versão do crime organizado — no caso, a “pessoa amada” é substituída por “carro”, e a garantia é dada pela milícia, que encontrou no resgate de veículos roubados uma nova forma de ganhar dinheiro. Ela entra num filão inicialmente explorado pelo tráfico, que cobra “comissões” pela devolução de motocicletas e automóveis levados para dentro das comunidades que domina. Milicianos, no entanto, foram além, assumindo o papel de negociadores junto às chamadas associações de proteção veicular e patrimonial. São cooperativas não reguladas por autarquias que oferecem apólices com preços bem abaixo dos estipulados pelas seguradoras.
A ação de milicianos é reconhecida e denunciada por Raul Canal, presidente da Agência de Autorregulamentação das Entidades de Autogestão de Planos de Proteção Contra Riscos Patrimoniais. Ele diz que, no Rio, paramilitares (e também traficantes) firmaram acordos com cooperativas que preferem pagar comissões pela recuperação de carros roubados a indenizar seus clientes.
— Há uma situação peculiar no Rio, algo que chamamos de sequestro de veículos. Muitas vezes, bandidos roubam ou furtam um carro para receber um pagamento de R$ 200 a R$ 300. Aí, entram em cena os intermediários das associações picaretas, que prometem encontrá-lo dentro de algumas horas ou poucos dias. Como o veículo segurado por uma cooperativa sempre tem um rastreador, eles podem, por exemplo, ir a uma comunidade e negociar sua liberação com a quadrilha local — explica Canal.
O presidente da agência diz que há cerca de 4 mil cooperativas de seguros no país. O Rio tem 172, mas apenas 38 são filiadas à entidade. Canal ressalta que a prática das associações clandestinas de pagar comissões a milicianos e traficantes incentiva o roubo e o furto de veículos:
— Algumas associações não têm reserva de capital para pagar um número razoável de prêmios em determinado período e acabam efetuando o resgate para não quebrar. Nossa agência não compactua com isso e luta por uma regulamentação para o setor.
No Rio, o valor das apólices de cooperativas chega a ser 70% menor que o cobrado pelas empresas reguladas pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda que é responsável pela fiscalização do mercado. Com preços convidativos, as associações de proteção veicular e patrimonial têm atraído principalmente motoristas que trabalham com aplicativos e proprietários de carros que moram em regiões de altos índices de roubos e furtos de veículos.
Apesar de esse tipo de crime estar em queda no Rio, como mostram as últimas estatísticas do Instituto de Segurança Pública (ISP), o número de ocorrências em alguns locais mantém elevado o valor do seguro convencional, na comparação com áreas de poucos roubos. Considerando variações da idade do motorista, a apólice de um Fiat Mobi zero quilômetro pode custar de R$ 3.934 a R$ 11.912 na Pavuna. No Leblon, oscila entre R$ 1.517 e R$ 3.523. Dono de um carro desse modelo, um morador do bairro da Zona Norte paga, por mês, R$ 243 a uma cooperativa.
Polícia investiga
Escutas telefônicas feitas pela Polícia Civil e autorizadas pela Justiça comprovam que criminosos negociam devoluções de carros com representantes de cooperativas de seguros. Um inquérito da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis (DRFA) aponta que pelo menos seis delas recuperaram veículos após contatos com traficantes.
Segundo o delegado Alessandro Petralanda, titular da DRFA, intermediários recebem até 10% do valor do carro e oferecem parte dessa comissão a bandidos:
— Uma prática comum dessas cooperativas é pagar prêmios a quem está com o veículo. Elas têm pessoas para fazer contato com o criminoso. Isso fomenta o roubo em determinadas regiões, como a Baixada Fluminense, conforme mostram nossas investigações. Essas cooperativas não são seguras, não há garantia real de recebimento do valor do sinistro. Elas funcionam numa espécie de pirâmide; se não há dinheiro para pagar a todos os clientes, pagam a quem achar conveniente.
O advogado David Nigri, especialista em direito do consumidor, explica que seguradoras são obrigadas, por lei, a manter uma reserva para o pagamento dos sinistros, o que não ocorre com as cooperativas:
— Cooperativas não têm patrimônio. Nas ações contra elas, o consumidor geralmente ganha, mas não leva. Não tem como penhorar seus bens. Por isso, surgem os conchavos com a milícia e o tráfico.