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24 September 2024

Decreto sobre armas gera intenso debate na Bahia

A liberação de armas antes restritas às forças de segurança, a ampliação das categorias profissionais autorizadas a transportar armamento fora de casa e a permissão da prática de tiro para menores de 18 anos são os pontos mais questionados do Decreto 9.785/2019. Elaborado para regulamentar o Estatuto do Desarmamento, o decreto, assinado no último dia 7 pelo presidente Jair Bolsonaro, é alvo de ação do Ministério Público Federal (MPF), que requer a suspensão imediata e integral.

O presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB-BA), Marcos Sampaio, concorda com o argumento do MPF, que percebe no decreto um extrapolamento da natureza regulamentar. “Há uma autorização maior do que a permitida na atual legislação, o que fere o princípio da separação dos poderes. O decreto não pode contrariar a lei e, se a matéria é de lei, somente o Poder Legislativo poderia fazer essa ampliação”, explica.

O decreto assinado pelo presidente amplia a lista de armas permitidas, possibilitando que o ci dadão comum possa adquirir pistolas 9mm, antes restritas ao Exército, Polícia Federal, e Polícia Rodov iária Federal, e revólveres calibre .40, geralmente usados por policiais militares e civis.

O texto também acrescenta diversas categorias profissionais entre as autorizadas a transportar armas, incluindo agentes públicos de segurança inativos.

Políticos em exercício de mandato, oficiais de Justiça, advogados, agentes de trânsito, caminhoneiros, conselheiros tutelares, profissionais de imprensa em cobertura policial e residentes de áreas rurais são alguns dos outros grupos que terão esse direito.

Liberação da circulação de armas no País é alvo de críticas de vários segmentos
Liberação da circulação de armas no País é alvo de críticas de vários segmentos

Constitucionalidade

Mestre em direito público, especialista em direito penal e professor da Unifacs, Pablo Castro explica que regulamentar uma lei representa fazer a complementação dos campos com lacunas, mas que percebe no Decreto 9.785/2019 um conteúdo contrário à própria intenção da Lei 10.826/03, o Estatuto do Desarmamento. Ele acrescenta que, de acordo com a Constituição, “legislar sobre posse e porte de armas é uma competência do Poder Legislativo”.

Em contraponto, o coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público da Bahia, Marcos Pontes, avalia que “em princípio, não foi detectada inconstitucionalidade no decreto”. O promotor diz não ter feito ainda uma leitura detalhada do texto, mas acrescenta que a análise dele está em consonância com a de coordenadores criminais de MPs de outros estados.

Pontes defende que é preciso discutir o Artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, que define como infração penal o porte de armas de uso restrito, sendo que algumas delas foram incluídas pelo decreto na lista de armamento permitido. Para ele, a questão central é a possibilidade de retroatividade da lei, não havendo um conflito entre os conteúdos da lei e do decreto.

Segurança

“O Decreto 9.785/2019 coloca em risco a segurança pública de todos os brasileiros”, argumenta o MPF no pedido de tutela antecipada que tem como finalidade a suspensão do decreto. O documento alerta que “a extensão ilegal do direito à aquisição e ao porte tal como previsto no decreto – caso este se mantenha vigente – poderá causar efeitos irreversíveis, uma vez que a arma de fogo é um bem durável”.

Para fundamentar o argumento, os cinco procuradores que assinam o documento citam estudos realizados nos últimos anos no País, como o Mapa da Violência, elaborado pela ONG Flacso Brasil.

Em análise da edição de 2016, o estudo estima que, só naquele ano, 17.173 vidas haviam sido poupadas em função do Estatuto do Desarmamento, totalizando 133.987 vidas poupadas desde a criação da lei, em 2003.

“As decisões em torno da posse/porte de armas na atual conjuntura política parecem não se pautar em indicadores e critérios claros”, reforça a pesquisadora Ana Clara Rebouças, integrante do Programa de Estudos, Pesquisas e Formação em Políticas de Gestão de Segurança Pública da Universidade Fedrral da Bahia (Ufba): “Possuir e/ou portar arma não está necessariamente relacionado à redução das taxas de morbimortalidade por violências e crimes”.

Questionado por juristas, decreto sobre armas agrada praticantes de tiro
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MP-BA É CONTRA LIBERAÇÃO CONCEDIDA A ADOLESCENTES

Antes condicionada à obtenção de autorização judicial, a prática de tiro desportivo por menores de 18 anos é liberada no Decreto 9.785/2019, mediante autorização de um dos responsáveis legais. A mudança é contestada na ação do Ministério Público Federal, que aponta confronto com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

No artigo 242, o ECA prevê pena de reclusão de três a seis anos a quem “vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente arma, munição ou explosivo”.

“Nós vemos [a mudança] com preocupação, porque a autorização judicial tem o cuidado de buscar outros elementos além da autorização dos pais. Por exemplo, se a criança ou adolescente tem algum transtorno ou alteração comportamental que torne o contato com armas prejudicial a ela”, declara a coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Criança e do Adolescente do Ministério Público da Bahia, Marli Barreto.

A promotora explica que é feita também uma verificação sobre o envolvimento do adolescente em atos infracionais e, em caso positivo, a autorização para a prática de tiro não é concedida. Ela também questiona até que ponto o contato de crianças e adolescentes com armas pode ser prejudicial ao autodesenvolvimento, e motivar desequilíbrios no ambiente familiar e escolar.

“A curiosidade da criança é por coisas que ela não conhece”, defende o presidente do Clube Baiano de Tiro, Ângelo Matos, que percebe o conhecimento sobre armas de fogo como medida preventiva de acidentes.

“Eu tenho uma filha de 8 anos e já fiz o teste. Coloquei uma arma de fogo em cima da mesa e fiquei na porta. Ela passou, olhou e nem tocou na arma. Desde pequena, ela tem um pai que é instrutor de tiro, vive com arma de fogo, e sabe que é uma coisa perigosa e não pode ser mexido”, conta.

“Ensinar menores de 18 anos a manusear uma arma de fogo com intuito da prática desportiva é uma ação positiva,  fazemos com metodologia, técnica e, principalmente, segurança”, argumenta o presidente da Associação Baiana de Tiro, César Castro.

Ar comprimido

Castro diz ainda não ter recebido inscrições de adolescentes nos cursos oferecidos no clube, mas alguns filhos de sócios já demonstraram interesse. Ele garante que nesse caso a prática será iniciada com armas de ar comprimido, e os jovens só manusearão armas de fogo após aprenderem as técnicas e regras de segurança.