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30 September 2024

Machucados pela fé LGBTIs submetidos a processos de cura ao Conselho de Psicologia

Luís (nome fictício) tinha 14 anos quando foi tirado à força do armário. “Não tive tempo de me assumir”, diz. Sua mãe havia confiscado o celular e passou a madrugada observando as mensagens que ele trocava com o namorado. Ele já tomava banho de cueca por medo de alguém entrar no banheiro enquanto estava nu –achava que todo o tempo era observado. “Quando a minha mãe descobriu, eu fugi de casa. Falou que eu iria para o Inferno, que aquilo ali não era certo. Eu tinha lido que, se eu bebesse muita água, eu poderia me matar. Aí, nesse dia, eu tomei muita, muita, muita, muita água. Eu não queria estar ali. Eu me senti uma pessoa perdida e que aquilo ali realmente era uma doença.”  O personagem que abre esta reportagem, é homem cis, branco, gay e tem 19 anos. Enquanto afirmava sua sexualidade, ouvia de uma tia que o acolheu: “Você pode ser gay, mas você não precisa ser aquele gay que tem o cabelo grande, que corta o cabelo de lado. Eu quero que você seja comportado”. Nos tratamentos, os psicólogos que o acompanhavam davam o diagnóstico de que se tratava de uma doença. Eram psicólogos, mas só falavam de Deus. Liberto das tentativas de reversão da orientação sexual, se viu mais perdido do que no dia em que suas mensagens com o namorado foram vistas. “O pós afetou mais do que o durante, quando eu comecei realmente a tomar medicamentos tentando me matar.O Conselho Federal de Psicologia intensificou a denúncia de práticas como a sofrida por Luís desde março de 2017. Na época, um grupo de psicólogos acionou a Justiça Federal do Distrito Federal para que a Resolução 01/1999 do CFP fosse suspensa –e conseguiu. A norma estabelecia métodos de atuação em relação à questão da orientação sexual e impedia tentativas de “reversão” ou “cura gay” –uma prática que já foi comum nos sanatórios nas décadas de 1930 e 1940. A decisão da Justiça Federal só foi suspensa em 24 de abril de 2019 pela ministra Cármen Lúcia, do STF (Supremo Tribunal Federal

O CFP já havia recebido denúncia de que uma pessoa havia sido submetida a uma tentativa de “reversão” naquele mesmo ano. À época, a Comissão de Direitos Humanos da entidade tomou conhecimento de outras práticas que tentavam aniquilar expressões e comportamentos que não fossem heteronormativos. “As comunidades terapêuticas têm sido uma nova estratégia de manicomização e de uma pretensa forma de cuidado das pessoas”, afirma Rodrigo Toledo, conselheiro do CRP/SP e presidente da Comissão de Ética da entidade. A homossexualidade não é classificada como doença desde 1989 pela OMS (Organização Mundial da Saúde), que deixou de admitir a transexualidade como patologia em 2018

Diante da ameaça judicial e de grupos organizados de psicólogos, a Comissão de Direitos Humanos do CFP começou a ouvir em dezembro de 2017 narrativas de pessoas LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais) que haviam sido submetidas a procedimentos e programas de tentativas de mudanças de orientação sexual e identidade ou expressões de gênero. Foram 32 entrevistas como a de Luís: 31% no Nordeste, 28% no Sudeste, 22% no Norte, 13% no Centro-Oeste e 6% no Sul

Dessas pessoas, 19 eram homens cisgênero, seis mulheres cisgênero, dois homens transexuais, dois não bináries (sem orientação sexual definida) intersexual, uma travesti, uma mulher transexual e uma mulher intersexual. A maior parte se autodeclara gay (56%) e é branca, com 53% com pelo menos um curso superior concluído (desses, metade tem pós-graduação), com idade inferior a 29 anos

O resultado foi o livro “Tentativas de Aniquilamento e Subjetividade LBGTIs”, organizado pelo Conselho Federal de Psicologia e pelos Conselhos Regionais, publicado em julho. Os depoimentos são catalogados em nove seções. Elas passam pela identificação da orientação de gênero, o encaminhamento das famílias e as práticas às quais foram submetidas as vítimas. “Demos voz às pessoas que passaram por esse procedimento”, afirma o psicólogo Héder Lemos Bello, assessor da Comissão de Direitos Humanos do CFP. “Nossa maior surpresa é a variedade de quem pratica esse tipo de processo de ‘cura gay’, como um professor de ioga que tentava fazer a ‘reversão’ em um paciente.

Todos os relatos a seguir têm a mesma roupagem: “intervenções psicológicas” travestidas de processos religiosos de cura. Eram supostos profissionais que exerciam a função a mando de igrejas de matizes diversas –católicas, evangélicas e espíritas

“São pessoas pressionadas por viver em um ambiente LGBTfóbico”, diz Bello. “Todas as vezes que um LGBTI passa por um procedimento como esse, há um aumento do sentimento de culpa, de depressão, de muitos sintomas. Precisamos de argumentos para enfrentar ética e profissionalmente essas tentativas de aniquilamento [de identidades de gênero]