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22 September 2024

Série Pistoleiros: Conheça a Patamo 500, patrulha que formou Ronnie Lessa, acusado de assassinar Marielle Franco

Em outubro de 2018, cinco meses antes de ser preso pelo assassinato da vereadora Marielle Franco, o sargento da PM Ronnie Lessa enviou uma foto a um amigo policial pelo WhatsApp. Na imagem, aparecem oito PMs fardados na frente de um parque infantil. O registro foi feito num momento de comemoração: Lessa, o segundo da esquerda para a direita, segura um copo que contém um líquido que parece cerveja. Ao lado dele, está o hoje tenente-coronel — na época, capitão — Cláudio Luiz Oliveira, que atualmente cumpre pena de 30 anos de prisão por ser o mandante do assassinato da juíza Patrícia Acioli. Anos antes de seus nomes frequentarem manchetes de jornal e serem conhecidos nacionalmente, os dois homens apontados como autores dos dois crimes de maior repercussão da história recente do Rio trabalhavam juntos, numa mesma viatura, como comandante e comandado.

A foto foi descoberta no celular de Lessa, apreendido pela polícia no dia de sua prisão, em março de 2019. Ela é um registro raro dos integrantes da Patamo 500 — uma patrulha que, ao mesmo tempo em que virou uma lenda dentro da PM, provocava terror nos moradores de favelas da Zona Norte do Rio no final dos anos 1990. Em cinco anos, Lessa, Oliveira e seus colegas participaram de ocorrências que terminaram em pelo menos 22 mortes, duas vítimas feridas após uma sessão de tortura e um desaparecimento de um homem, após ser colocado no xadrez da viatura.

A trajetória de crimes de Ronnie Lessa na PM é reconstituída em detalhes no primeiro episódio de Pistoleiros, um podcast original Globoplay produzido pelo GLOBO, que vai ao ar a partir de hoje. Ao longo de cinco episódios, a série — resultado de um trabalho de um ano e meio de apuração — vai revelar histórias inéditas sobre o submundo da pistolagem carioca.

Do Bope ao 9º BPM

Ronnie Lessa é o primeiro à esquerda, na época em que servia no 9º BPM (Rocha Miranda). Ao lado dele, está Claudio Oliveira, hoje tenente-coronel, preso pelo homicídio da juíza Patricia Acioli Foto: Reprodução
Ronnie Lessa é o primeiro à esquerda, na época em que servia no 9º BPM (Rocha Miranda). Ao lado dele, está Claudio Oliveira, hoje tenente-coronel, preso pelo homicídio da juíza Patricia Acioli Foto: Reprodução

O nome pelo qual o grupamento de Lessa e Oliveira ficou conhecido vem de “Patrulhamento Tático Móvel”, o jargão policial usado para nomear o conjunto de agentes armados com fuzis responsável por atuar em casos de maior gravidade, como sequestros e assaltos a bancos. O número 500 era o que estava estampado na viatura usada pelos PMs. Até hoje, Lessa tem saudade do período de pouco mais de cinco anos em que serviu na patrulha chefiada por Oliveira: “Patamo 500. Formação original, 1997. Das antigas”, escreveu o sargento, num tom saudosista, ao enviar a foto ao amigo pelo aplicativo.

A história da patrulha tem início em janeiro de 1997, quando o então capitão Cláudio Oliveira foi transferido para o 9º BPM, em Rocha Miranda, quartel responsável por policiar uma área que, à época, cobria mais de 30 bairros e mais de 20 favelas — sendo três complexos de comunidades: Chapadão, Pedreira e Serrinha — dominadas por três facções diferentes. O batalhão já tinha um histórico de violência policial: antes da Patamo 500, o quartel teve os Cavalos Corredores, grupo de PMs que participou da Chacina de Vigário Geral, em 1993. Na ocasião, 21 pessoas foram mortas numa incursão na favela em represália à morte de quatro policiais. Quatro anos depois do massacre, Oliveira, um caveira formado pelo Bope, chegou ao 9º BPM com a missão de formar uma equipe especializada em confrontos.

O objetivo inicial era fazer uma ocupação na favela de Acari. E, para isso, o oficial foi buscar seus homens de confiança para integrarem a patrulha. Lessa, que era considerado um de seus “pupilos” no Bope, foi uma escolha óbvia. Os demais escolhidos foram os PMs Guilherme Tell Mega, Roberto Luiz de Oliveira Dias, Marcelo Ferreira Rodrigues e Floriano Jorge Evangelista de Araújo — todos eles policiais operacionais, egressos de unidades que atuavam em áreas conflagradas, como o próprio Bope, a Companhia de Cães e o 16º BPM (Olaria), responsável por patrulhar o Complexo do Alemão.

Execuções e promoções

 

Juntos, Lessa e Oliveira trilharam uma trajetória de homenagens na Patamo 500. Entre 1997 e 1998, os elogios nas fichas funcionais de ambos chegaram a uma média de um por mês. No mesmo período, a atuação da dupla na patrulha rendeu moções de aplausos e congratulações da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) — propostas pelo então deputado Pedro Fernandes, que tinha sua base eleitoral na área do batalhão.

Uma política pública que apostava nos confrontos como estratégia para combater o crime praticamente deu carta branca para a atuação da Patamo 500: a “gratificação faroeste”, como ficou apelidada a premiação por bravura criada pelo governador Marcello Alencar (PSDB) em 1995. Na prática, a medida concedia bonificações salariais a policiais que participavam de ocorrências com mortes. Lessa e Oliveira viram seus salários aumentarem em, respectivamente, 40% e 90%, em 1998. A gratificação acabou gerando uma explosão do número de homicídios em operações no estado e, por isso, foi derrubada pela Assembleia Legislativa do Rio três anos após sua criação.

Os integrantes da Patamo 500 não ganharam só bonificações, mas também progrediram na carreira dentro da PM graças às ocorrências com mortes e apreensões. Antes de entrar na patrulha, Lessa era soldado. Em menos de um ano, teve uma ascensão meteórica: foi promovido por bravura duas vezes em menos de um ano e, ao final de 1997, já era sargento. Em dezembro de 1997, todos os integrantes da Patamo foram promovidos juntos: Oliveira virou major e os demais passaram de cabos a sargentos. Os boletins da PM mencionavam “a dedicação à causa pública, o preparo profissional, moral e o cometimento de atos não comuns de audácia e coragem” de Lessa e seus colegas.

Perfil: PM Ronnie Lessa é conhecido por ser exímio atirador e por sua frieza

Ao mesmo tempo em que era premiada pelo governo, a Patamo 500 deixava um rastro de sangue. Um levantamento feito pelo GLOBO em documentos internos da PM — como sindicâncias, boletins e fichas funcionais dos agentes — contabilizou pelo menos 22 mortes durante operações da Patamo 500 entre 1998 e 2002. Em uma só incursão, em 21 de julho de 2001, na favela Faz-Quem-Quer, em Rocha Miranda, sete homens foram mortos. Os policiais da Patamo 500 ganharam elogios internos pela ocorrência: “demonstraram irrepreensível formação profissional, pois aplicaram um golpe contundente contra a criminalidade”. Foram identificadas ocorrências com mortes nas favelas do Chapadão, Guaxindiba, Acari, Morro da Caixa D’Água, Serrinha, Fubá e Parque Columbia.

Na maioria dos registros, a mesma dinâmica se repete: os agentes afirmam que “foram recebidos com disparos de arma de fogo pelos marginais e revidaram a injusta agressão”. As justificativas dos agentes eram aceitas e os casos acabavam arquivados. Só três inquéritos contra a Patamo 500 chegaram à Justiça e, até hoje, não há condenação.

Num dos casos, Lessa e Oliveira responderam, juntos por torturarem um casal. O caso aconteceu em 26 de junho de 1997, na Pavuna. Duas vítimas procuraram a Polícia Civil para relatar que, após serem abordadas pela dupla, foram agredidas para que dessem informações sobre o paradeiro de armas e drogas na região. Uma testemunha corroborou a versão das vítimas. O inquérito, no entanto, ficou mais de uma década parado. Até que, em outubro de 2008, o Ministério Público propôs a ação contra os policiais. Depois de tanto tempo, vítimas e testemunhas disseram não lembrar do caso e, em agosto de 2009, Lessa e Oliveira foram absolvidos. Para o juiz Marcel Duque Estrada, não havia “convicção segura da existência do fato”.

A Patamo 500 também foi investigada depois que a família de um homem procurou o batalhão e a delegacia da região para denunciar que ele nunca mais foi visto depois de ser colocado no xadrez de uma viatura. Os parentes apresentaram à polícia uma testemunha que viu o momento em que Marcelo Fabiano de Oliveira de Araújo, de 24 anos, foi abordado pelos PMs, quando trafegava de moto pela Avenida Automóvel Clube, em Irajá, no início da tarde de 16 de janeiro de 2002. Dados do GPS de viaturas do 9º BPM foram analisados: a única que passou pelo local, às 11h55, foi justamente a de número 500. Para a PM, bastou que os policiais negassem a abordagem para que a investigação interna fosse arquivada. No relatório final da investigação interna, a patrulha ainda foi elogiada: “de forma contundente, combate a criminalidade e retira do convívio social marginais, bem como armas e drogas”. Até hoje, o jovem não foi encontrado.

— O Marcelo foi abordado e ficaram rodando com ele na viatura. Devem ter achado que ele era bandido. Depois disso, ele nunca mais apareceu. A vida da família parou na época — conta um parente, que pediu para não ser identificado.

Processo parado por duas décadas

Dálber Virgílio da Silva, o Binho, traficante que teria sido assassinado por Ronnie Lessa Foto: Arquivo
Dálber Virgílio da Silva, o Binho, traficante que teria sido assassinado por Ronnie Lessa Foto: Arquivo

Outra denúncia contra a Patamo 500 teve um desfecho diferente: depois de vagar por duas décadas por gavetas de delegacias e do Ministério Público, Lessa e outros dois integrantes da patrulha viraram réus por terem executado dois traficantes no Parque Columbia. O crime aconteceu durante uma operação da patrulha na favela em 1º de setembro de 2000 que teve como objetivo capturar um dos traficantes mais procurados do Rio á época: Dálber Virgílio da Silva, o Binho. Meses antes, ele havia invadido uma delegacia para libertar a namorada, que estava detida na carceragem. Para a PM, na época, a ocorrência que terminou com a morte do traficante foi um sucesso.

A versão dos policiais é que Binho e um comparsa foram mortos num tiroteio. Um detalhe, no inquérito, não batia com o relato: o tiro que matou o comparsa de Binho deixou uma “orla de tatuagem” na pele — resíduos de pólvora que indicam que o tiro foi feito à curta distância, um sinal de execução. A prova, no entanto, foi ignorada por 20 anos. Só após a prisão de Lessa, em 2019, a investigação foi retomada e sofreu uma reviravolta: uma testemunha chave, que viu toda a ação, foi localizada.

Em depoimento, o homem revelou que era um dos traficantes do bando de Binho, estava portando um fuzil e afirmou ter atirado nos policiais naquele dia. Segundo ele, “após troca de tiros, os PMs conseguiram encurralar os traficantes num terreno baldio” e, em seguida, “executaram os mesmos”. A testemunha ocular sobreviveu, mas foi capturado e sufocado com um saco plástico para que fornecesse informações sobre o tráfico na favela. Por fim, ele contou que os PMs propuseram “um acordo”: se ele passasse os dados sobre o tráfico, seria liberado — o que aconteceu. Esse é o único crime que Lessa teria cometido, enquanto policial, fardado, pelo qual ele responde na Justiça até hoje.

Gratificação faroeste e promoções

Cláudio Luiz Oliveira, que atualmente cumpre pena de 30 anos de prisão por ser o mandante do assassinato da juíza Patrícia Acioli, mas ainda recebe salário da PM Foto: Arquivo
Cláudio Luiz Oliveira, que atualmente cumpre pena de 30 anos de prisão por ser o mandante do assassinato da juíza Patrícia Acioli, mas ainda recebe salário da PM Foto: Arquivo

No início de 2003, quando a Patamo 500 foi dissolvida, seus integrantes foram promovidos. Lessa, por exemplo, acabou sendo emprestado para a Polícia Civil, o que era um prêmio à época. Os “adidos”, como eram chamados os PMs que trabalhavam em delegacias, tinham prestígio, ganhavam bonificações salariais e não precisavam mais se subordinar à hierarquia da Polícia Militar. Já Cláudio chegaria a cargos de subcomandante e comandante de mais de um batalhão.

Nas décadas seguintes, no entanto, todos os integrantes da Patamo 500 acabariam sendo mortos ou presos sob diferentes acusações de ligação com o crime organizado — de recebimento de propina de traficantes a desvio de armas. O sargento Marcelo Ferreira Rodrigues, foi executado a tiros de fuzil, em Jacarepaguá, na Zona Oeste, pouco depois do fim do grupo, em 2004. O caso não foi solucionado até hoje. O sargento Guilherme Tell Mega foi um dos alvos, em 2006, da Operação Tingüi, da PF, que investigou a ligação de PMs com traficantes da favela do Muquiço, na Zona Norte. Mega foi solto no ano seguinte e absolvido em 2011. Já os subtenentes Floriano Araújo, o Xexa, e Roberto Luiz Dias, o Beto Cachorro, foram presos em 2011, na Operação Guilhotina, que teve como alvo PMs que trabalhavam cedidos à Polícia Civil e eram acusados de receber propina e desviar armas apreendidas. Ambos também foram absolvidos.

Ronnie Lessa foi preso em março durante a Operação Lume, que capturou acusados pela Polícia Civil pela morte de Marielle Franco Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo
Ronnie Lessa foi preso em março durante a Operação Lume, que capturou acusados pela Polícia Civil pela morte de Marielle Franco Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

Hoje, tanto Ronnie Lessa quanto Cláudio Oliveira estão presos. O ex-pupilo aguarda julgamento na Penitenciária Federal de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Sua defesa afirma que ele é inocente de todas as acusações a que responde atualmente — os homicídios de Marielle Franco e Anderson Gomes, tráfico de armas e destruição de provas. Já o mentor cumpre pena na Unidade Prisional da PM, em Niterói, e, mesmo condenado, continua na PM, recebendo salário do Estado até hoje.