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28 November 2024

A cabeça de Moro, capítulo II: De 2003 até 2012

 

 

 

 

 

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Em 12 de junho de 2003, Moro assumiu a primeira vara especializada em crimes contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro, em Curitiba. Pela escassa promessa de projeção e farta carga de trabalho, o novo cargo era desprezado por quase todos. Moro não tinha nenhum conhecimento especial sobre o assunto, mas aceitou o desafio. A criação da vara respondia a uma demanda crescente, sobretudo no Paraná. Dos 1 502 processos de lavagem de dinheiro que tramitavam nos três estados do Sul, 803 eram no Paraná, efeito da Tríplice Fronteira e do uso intenso de uma modalidade então muito disseminada de conta, apelidada de CC5, através da qual se podia remeter dinheiro ao exterior. Quando Moro tomou posse, havia apenas um réu definitivamente condenado por lavagem de dinheiro em todo o país. Um só. Estimava-se que empresas de fachada lavavam 10 bilhões de dólares por ano, sem ser incomodadas. Uma farra. Moro, aparentemente um pouco mais descrente da natureza humana do que antes, faria intervenções cirúrgicas para mudar radicalmente a paisagem de impunidade.

Na nova função, Moro continuou atuando no seu primeiro caso de repercussão nacional: o escândalo do Banestado, um gigantesco escoadouro clandestino de dinheiro para o exterior cujos valores superam com folga as petrorroubalheiras. Também trabalhou no caso que desmantelou a quadrilha do traficante Fernandinho Beira-Mar, que encarnava a versão brasileira mais próxima de um Pablo Escobar. No Banestado, Moro aprendeu muito, mas também se decepcionou muito com o prende e solta tão típico da realidade brasileira. Começou aí a amadurecer conceitos e ideias que, mais tarde, se tornariam parte de sua identidade profissional. Diz um advogado paranaense: “Os erros que Moro cometeu no Banestado, ele está evitando na Lava-Jato”. A delação premiada, por exemplo, surgiu no caso Banestado. Em 16 de dezembro de 2003, o indefectível Alberto Youssef, o doleiro de todos os escândalos, assinou acordo de delação premiada, quando ainda nem havia lei que regulamentasse o instituto. Em dezembro de 2009, Moro escreveu numa sentença que Youssef era um “notório criminoso” e carecia de “elevada credibilidade”, mas já então recomendava que se ouvisse o que tinha a dizer sob pena de que nunca se desvendassem crimes de corrupção. Moro também se tornou um dos poucos juízes brasileiros que já trabalharam num caso em que o delator virou infiltrado, como aparece nos filmes americanos. O acusado num caso de fraudes em um consórcio no Paraná fez o acordo de colaboração, deixou a prisão e recebeu instruções de obter mais informações junto aos criminosos. A infiltração, porém, não rendeu o esperado.

Entusiasta da delação premiada, Moro sempre a defende em suas sentenças fazendo referência ao juiz americano Stephen Trott, autor de um estudo sobre o assunto que o próprio Moro traduziu para o português. O trecho de defesa tem quatro parágrafos. Moro aplica o Ctrl C + Ctrl V, o famoso copia e cola, e reproduz o mesmo trecho, idêntico, sentença após sentença. Leva à risca a condição segundo a qual o conteúdo do testemunho de um delator só vale se for corroborado por prova independente. Em abril de 2010, absolveu dois acusados de evasão de divisas porque o relato do delator era o único elemento contra os réus. Escreveu: “Embora o relato até soe verossímil, não foi produzida a necessária prova de corroboração”. Para a turma presa em Curitiba, essa exigência talvez seja uma boa notícia.

A má é que Moro já condenou um réu com base na “teoria do domínio do fato”, a mesma que causou tanta controvérsia ao ser usada pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa na condenação de José Dirceu no mensalão. Num caso desimportante de contrabando e falsificação de nota fiscal, Moro condenou o réu a “pena um pouco acima do mínimo legal”, converteu-a em serviço à comunidade e explicou a lógica da condenação: “Autor do crime não é apenas o executor material, mas também quem tem domínio sobre o fato delitivo”. A diferença, em relação a Joaquim Barbosa, é que no caso de Moro o “domínio do fato delitivo” por parte do réu era inteiramente incontroverso. Em 2012, Moro trabalhou nos bastidores do mensalão, auxiliando a ministra Rosa Weber. Viu, com lupa, as entranhas de uma engrenagem ilegal que, então, parecia gigantesca.

Nessa fase intermediária de sua carreira, suas sentenças foram ficando mais técnicas, mais frias. Criou, ou passou a externar com mais liberdade, uma aversão a tudo o que lhe parece uso abusivo de direitos e garantias. Em outubro de 2008, um réu que se recusara a fazer o teste do bafômetro defendeu-se alegando que tinha o direito de não produzir prova contra si, o mesmo princípio do direito de ficar calado. Moro derrubou a tese. Alegou que o direito ao silêncio se refere apenas à comunicação e, portanto, não protege quem, por exemplo, se nega a fornecer sangue para um exame de DNA. Para Moro, nem a liberdade é um direito ilimitado, pois a prisão é cabível, mesmo antes do julgamento, sempre que há prova irrefutável de que o interesse coletivo ou individual pode ser ofendido. Ele acha que a presunção de inocência é interpretada com excessiva liberalidade pelos magistrados brasileiros. E acredita que o direito a apelar em liberdade contra uma sentença deveria ser uma exceção, e não uma regra, como acontece hoje. O próprio direito à defesa precisa ser exercido dentro de limites razoáveis. Em agosto de 2011, Moro censurou duramente a defesa de um réu que arrolou testemunhas espalhadas por diversas cidades do território nacional, indicando nomes e endereços errados ainda por cima, com o único propósito, suspeitou Moro, de retardar o processo. Em outra ocasião, explicitou na sentença que o direito à defesa não inclui o direito de produzir provas “impossíveis, custosas, protelatórias”. Moro também se tornou impaciente com defensores que se concentram em aspectos formais do processo e nunca enfrentam o mérito da acusação. Nas 300 sentenças que VEJA examinou, não há uma única em que Moro tenha aceitado alguma medida com remota aparência de manobra para adiar o processo.

Na vara da lavagem de dinheiro, Moro amadureceu seu entendimento sobre crimes do colarinho-branco, que estudou a fundo e passou a considerar tão ou mais danosos à sociedade que a criminalidade comum das ruas. Embasa sua posição no estudo clássico do sociólogo americano Edwin Sutherland, publicado em 1949, no qual se lê: “Crimes do colarinho-branco violam a confiança e, portanto, criam desconfiança, o que diminui a moral social e produz desorganização social em larga escala. Outros crimes produzem efeitos relativamente menores nas instituições sociais ou nas organizações sociais”. Em mais de uma sentença, Moro recorreu ao Ctrl C + Ctrl V do trecho em que define o colarinho-branco. Nele, além de citar Sutherland, queixa-se de que a jurisprudência brasileira “não é rigorosa” e a prisão preventiva, para criminosos de colarinho-branco, deveria ser quase um imperativo.

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