Exclusão digital deixou famílias pobres sem auxílio emergencial
A exclusão digital prejudicou o acesso das famílias mais pobres ao auxílio emergencial durante a pandemia, de acordo com um estudo do FGV/Cemif (Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira, da Fundação Getulio Vargas).
Pelos dados, 20% dos entrevistados das classes D e E que tentaram e não conseguiram o auxílio do governo apontam a falta de celular como uma das razões para a não conseguir o benefício —quando consideradas todas as classes, esse percentual é de 7%.
Além disso, 22% dos mais pobres alegaram ter tentado e não conseguido o benefício por limitações da internet e 28% disseram não ter conseguido usar o aplicativo da Caixa.
O levantamento, do coordenador do Cemif, Lauro Gonzalez, e do pesquisador Marcelo Araújo, usou como base os dados da segunda edição do painel TIC Covid-19, do Cetic (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação), feito entre junho e setembro do ano passado.
A primeira barreira é a falta de acesso regular à internet. Os dados mais recentes da pesquisa TIC Domicílios apontaram que cerca de um em cada quatro brasileiros não usa a internet –a maioria justamente das faixas mais vulneráveis, das classes D e E e moradores de áreas rurais.
Para Gonzalez, o auxílio emergencial escancarou muitos problemas antigos do país. “Alguns estudos que fizemos ao longo da pandemia mostraram os efeitos de diversos auxílios sobre a renda e as pessoas que ficaram de fora. Ele lembra que, enquanto o governo discute a digitalização do cadastro do Bolsa Família, brasileiros das classes mais pobres passam por restrições básicas, como a falta de um celular ou de internet de qualidade.
No caso do paulista Marcelo Rubens, 45, o acesso à internet depende da boa vontade dos vizinhos, que emprestam o sinal de wi-fi para que ele verifique o depósito do auxílio emergencial. Em situação de rua, ele ajuda a cuidar há noves meses da praça Chão de Giz, no centro de São Paulo. Ele assumiu o espaço após a morte no ano passado do seu irmão de consideração, Alexandre Martinez, que havia adotado e enchido a praça de plantas.
Rubens, que conheceu Alexandre ainda na adolescência, prometeu ao amigo que cuidaria do espaço. Rega as plantas, transforma em arte outros objetos descartados e mantém o chão desenhado com giz (que dá nome ao lugar). Ele tinha começado a receber o auxílio antes de ir morar na praça. Agora, ele usa a internet compartilhada quando faz bicos nos prédios da vizinhança para verificar se recebeu o benefício.
Os números também mostram que 23% dos entrevistados das classes D e E tentaram e não conseguiram receber o auxílio. Quando se olha para as classes A e B, esse percentual é menor, de 17%, e de 21% para a classe C.
Para o pintor Marcelo do Carmo, 47, do Rio de Janeiro, a vida mudou para pior durante a pandemia: sem trabalho, ele teve de entregar a casa alugada e viu a mulher e a filha voltarem para o interior. “Não consegui o auxílio e passei a morar de favor em um quartinho no galpão de amigos. Tenho celular, mas internet é luxo.”
Ele acabou apelando para uma alternativa que muitos brasileiros sem fácil acesso aos meios digitais criaram durante a pandemia. Parte dos voluntários, que antes entregavam cestas básicas para as famílias da região, passaram a oferecer o serviço de cadastrar e acompanhar a aprovação do auxílio emergencial para essas famílias.
“As pessoas vão arrumando um jeito, criam uma estratégia de sobrevivência. Ainda assim, a impossibilidade de acompanhar o andamento do benefício pode ser suficiente para deixar a família sem o recurso”, diz Gonzalez.
Para definir as faixas, foi usada a classificação da Abep (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa), que se baseia na posse de alguns itens duráveis de consumo doméstico e no grau de instrução do chefe do domicílio.
Os pesquisadores também ressaltam que a exclusão digital existe mesmo entre as pessoas que já têm acesso à internet. Os entrevistados apontam vários problemas, como não saber baixar aplicativos ou não ter espaço suficiente no celular.
Entre os entrevistados mais vulneráveis, 23% não tinham espaço suficiente em seus aparelhos para baixar aplicativos e 18% não sabiam baixar.
Gonzalez ressalta que é preciso reconhecer os méritos da Caixa em colocar de pé um programa do tamanho do auxílio emergencial em tempo recorde. “Faz parte do legado da instituição, que vai além de qualquer governo. Mas a questão da digitalização com foco na população de baixa renda precisa ser priorizada por esta gestão.”
Agência Brasil
Foto : Folhapress