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25 November 2024
correio24horas Mãe de cinco crianças, entre 2 e 16 anos, Aline luta todos os dias para conseguir comida (Marina Silva/CORREIO)

Fome na Bahia: 46,8% dos lares chefiados por mulheres negras sofrem com insegurança alimentar

Até maio, mais de 5,8 milhões de pessoas estavam cadastradas em situação de extrema pobreza no estado

Aline é mãe solo de cinco filhos, entre 2 e 16 anos. Ela recebe o Auxílio Brasil, de R$ 600, com o qual paga o aluguel e integra o endereço mais recorrente da fome em Salvador: lares chefiados por mulheres negras. De manhã, acorda, amamenta a criança mais nova, e não come. No máximo, às vezes, acha uma farinha para misturar com água.  Leva os filhos mais velhos para o Projeto Axé, onde são alimentados. E, de tarde, eles vão para a escola, na qual conseguem almoçar e lanchar.

No início da noite, a mãe sai para procurar alimento. Primeiro na Praça da Piedade, onde aguarda doações — ultimamente escassas. Quando não consegue, procura verduras e frutas descartadas em feiras ou mercados. Mas a oferta já não é a mesma. “Aproveitam tudo. O máximo que consigo achar é três maçãs podres que eu raspo toda”, diz. Há anos, ela ainda achava pedaços de carne no lixo. Mais recentemente, passou a pegar a pelanca do frango, que levava para fritar em casa. Agora, nem isso encontra. “Eles vendem tudo. Até o osso vendem”, conta.

A rotina de escassez enfrentada por Aline é classificada como insegurança alimentar, e é a mesma que enfrentam quase metade das famílias chefiadas por mulheres negras. Uma pesquisa feita por professores e estudantes de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia (Ufba), divulgada no último dia 5 revela que a insegurança alimentar prevalece em 46,8% dos domicílios comandados por mulheres negras: insegurança alimentar leve (25,6%) e insegurança alimentar moderada ou grave (21,2%).

Em Salvador, 40,9% das famílias vivenciam algum nível de insegurança alimentar, segundo a pesquisa, conduzida entre os anos de 2018 e 2020. No último ano, o projeto QUALISalvador, que norteia o novo estudo, apontou que 7,9% das famílias da capital sofrem com insegurança alimentar severa — quando falta comida na mesa, segundo a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. Além disso, 23,7% vivem em situação de insegurança alimentar leve, quando existe incerteza sobre a capacidade para conseguir alimentos; e 9,3% das famílias enfrentam a insegurança moderada, quando alguma das refeições não é realizada.

O estudo publicado na “Revista Cadernos de Saúde Pública”, da Fundação Oswaldo Cruz, mostra ainda que entre as famílias da capital baiana, aquelas chefiadas por homens brancos são as que se alimentam melhor. A segurança alimentar foi observada em 74,5% dos lares chefiados por homens brancos. Na amostra de 14 mil domicílios do levantamento,  metade é chefiado por mulheres negras (50,1%), seguido por homens negros (35,4%), mulheres brancas (8,3%) e, por último, homens (6,2%) brancos.

“Não é possível discutir a insegurança alimentar sem considerar a hierarquização social, racial e de gênero, suas articulações e a persistência de práticas discriminatórias reproduzidas tanto em Salvador, quanto em todo o Brasil”, ressalta a coautora da pesquisa, Silvana Oliveira. De acordo com ela, para entender um problema na elaboração de políticas públicas de combate à fome, é necessário incorporar a interseccionalidade – “que considera as relações de poder, como racismo e sexismo”.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Salvador tem 3 milhões de habitantes, dos quais 80% são negros (pretos ou pardos).

Pão com água 

João*, de 64 anos, se encaixa na classificação de insegurança alimentar moderada. Ele se alimenta bem uma vez por dia, no Restaurante Popular, que cobra o valor simbólico de R$ 1 por refeição. Disse preferir não se identificar porque sente vergonha da situação que enfrenta. “Eu digo para as pessoas que vou almoçar no Boi Preto”, brinca. “Comida tá difícil hoje. Antigamente a gente comia, porque tinha trabalho, muita mão de obra, agora não tem”.

O aposentado faz duas refeições por dia. De manhã, quando come pão com água — por não conseguir comprar leite ou café — e no almoço, quando vai para o restaurante popular. À noite, diz que não tem comida. “E faz o que?”, pergunta a reportagem. “Faz o que? Fica com fome”, responde. A técnica é beber água e ir logo dormir.

Os restaurantes populares, dois administrados pelo governo da Bahia e dois pela prefeitura de Salvador, tentam garantir a segurança alimentar na capital. Cada um dos 417 municípios do estado tem seus próprios restaurantes. Na capital baiana, são oferecidas diariamente um total de 5.945 refeições.

De acordo com a superintendente de Inclusão e Segurança Alimentar da Secretaria de Justiça Social da Bahia, Rose Pondé, a demanda por refeições nos restaurantes populares aumentou nos últimos três meses. As filas começam a partir das 7h da manhã, para que as pessoas garantam seu alimento. A especialista diz que o órgão observa também uma “migração de classes” no atendimento.

“Antes nós atendíamos em sua grande maioria o público especificamente em vulnerabilidade social, mas muita gente já percebe numa avaliação mais constante a migração dessa classe. Então temos a procura de pessoas que estão desempregadas, que estão sem renda, e que antes não participavam desse hábito de alimentar-se no restaurante popular”, afirma Rosa Pondé.

Extrema pobreza 

Até maio deste ano, mais de 5,8 milhões de pessoas estavam cadastradas em situação de extrema pobreza na Bahia, de acordo com dados do CadÚnico. Isso significa que em cada 10 baianos, mais de 3 vivem com uma renda mensal de até R$ 105 — uma taxa de 38% da população. Em junho, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a cesta básica de Salvador custava  em média R$ 580.

Na capital baiana, a Coordenadoria de Segurança Alimentar (Cosan) também percebe o aumento da crise de insegurança alimentar, instaurada nesse período de pandemia. Os planos são aumentar a oferta de alimentos nos restaurantes populares em mais 400 refeições até 2024. A gestão municipal também conta com equipes que coletam doações de alimentos que seriam desperdiçados em feiras livres e supermercados para, após triagem, disponibilizá-los a cerca de 500 instituições sociais.

A pesquisadora Giselle Coutinho, do QUALISalvador, conta que os resultados do estudo foram assustadores. “Com a vivência do campo, 60 pesquisadores sempre traziam esse relato do quão foi triste, impactante. Eu nunca esqueço de uma casa de uma senhora no bairro da Liberdade ou Caixa D’água, ela morava sozinha, numa casa bem simples. Eu perguntei se podia aplicar o questionário.Quando cheguei na parte da insegurança alimentar, ela sempre respondia segurando o choro. Dentro das perguntas, tem se você reduziu a qualidade de alimentação, ela disse ‘Minha filha, eu só como fruta quando o carro da fruta passa e me doa o que sobrou’”, conta.

Os maiores índices de insegurança alimentar na capital baiana foram encontrados em Ilha de Maré (83,5%), Ilha de Bom Jesus dos Passos (74%) e Calabar (71,2%). Os pesquisadores destacam que, entre os 50 bairros com mais de 50% de famílias em insegurança alimentar, apenas seis não fazem parte do Miolo e do Subúrbio. Já os bairros com os menores percentuais de insegurança alimentar são Itaigara (5,9%) e Caminho das Árvores (6,9%).

Segundo especialistas, algumas consequências da insegurança alimentar são a desnutrição, anemia, falta de nutrientes principalmente em crianças de até 5 anos,  deficiência de crescimento, desenvolvimento hormonal, cognitivo, de energia, e até mesmo obesidade.

Até maio deste ano, 1.306 baianos foram internados por desnutrição e deficiências vitamínicas. “O cenário que o país está voltando a conviver é esse, de desnutrição e morte por causa da falta de alimentos. Desde a pandemia, tem falta de alimentação escolar. E muita gente está na rua não porque mora lá, mas porque é onde conseguem essa alimentação”, afirma Giselle.

Crise global 

O melhor resultado de segurança alimentar no Brasil foi registrado em 2013, quando 77% da população tinha uma boa alimentação. Em 2018, o número começou a diminuir. Já entre 2020 e 2021, o levantamento da Rede Penssan divulgado neste ano apontou para 33 milhões de brasileiros que passam fome. Segundo o estudo, apenas 40% das famílias do país têm garantia de acesso pleno aos alimentos atualmente. Nas primeiras semanas de agosto, os pesquisadores vão divulgar a análise específica do estado da Bahia.

“Segundo o relatório mundial de 2021, a situação é grave em todo o mundo, mas no Brasil ficou ainda pior. Há algo em nossa estrutura de desigualdade que compromete ainda mais o país. Houve decréscimo da segurança alimentar em todas as regiões do país, mas o pior caso continua sendo Norte e Nordeste. Em 2014, no melhor momento, região Sul e Sudeste chegava a ter mais de 80% [de segurança alimentar]. Em 2021, 50%. Mas Norte e Nordeste estava em 50%, e caiu para 28% e 32%”, explica Sandra Chaves, pesquisadora da Rede Penssan e professora de nutrição da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

A professora argumenta que os fatores para o aumento da insegurança alimentar são muitos e perpassam questões estruturais. “Mesmo antes da pandemia, nós já experimentamos em todo o país o aumento da insegurança alimentar, inclusive aumento da insegurança alimentar grave, identificada como fome. Com a pandemia e todas as consequências da gestão equivocada, como a paralisia de políticas sociais que já vinha acontecendo desde 2016, reforma trabalhista, aumento do desemprego, tudo se acumulou e a situação se tornou mais grave”, explica.

De acordo com Sandra, o desafio para a solução da fome é global. “O último relatório das Nações Unidas, da FAO, sobre o tema, é justamente a construção de políticas alimentares para garantir o acesso da população a uma alimentação saudável”, afirma. A pesquisadora elenca alguns dos obstáculos que precisam ser superados para garantir o direito universal à alimentação, que está presente também na Constituição Federal de 1988 .

“Precisamos de um sistema de saúde que proteja, profissionais habilitados para o diagnóstico de atenção, vamos precisar de políticas sociais — imediatas, porque quem tem fome tem pressa, como cesta básica, restaurante popular, cozinha comunitária, programa nacional de alimentação escolar. E também investimento na agricultura familiar e reformas estruturais como emprego, renda, escolaridade”, diz.

No momento, os pesquisadores estão no início da análise de dados estaduais. Os últimos dados disponíveis são da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, entre 2017 e 2018, apontavam para 54,7% dos baianos em segurança alimentar, taxa que deve ser menor na próxima pesquisa, diz Sandra. “Nada nos permite avaliar que os estados da região, como a Bahia, esteja melhor que o Nordeste, a tendência é que siga esse agravamento”, afirma.