Interesses impublicáveis
A edição do Decreto n. 9.690/2019, que alterou a regulamentação da Lei de Acesso a informações — a Lei n. 12.527, de 2011 —, publicado na última quinta-feira no Diário Oficial da União, é um enorme retrocesso na construção e manutenção de um Estado de Direito transparente e que prima pela eficiência e pelo combate à corrupção.
A Constituição de 1988 assegurou, em seu artigo 5º, o direito a todos os cidadãos de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, informações estas que deveriam ser prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade pessoal de quem eventualmente negar o acesso a tais informações.
A edição da Lei de Acesso a Informações – LAI, prevista pela Constituição, somente se concretizou 23 anos após a promulgação da nossa Carta, em 2011, no primeiro ano do mandato do Governo Dilma. A LAI foi uma grande conquista para a população e um passo fundamental no aumento da transparência do poder público. Nesse diploma foram estabelecidos os princípios, diretrizes e regras para a concretização do direito de acesso à informação em nosso país. Pela primeira vez, tivemos regulamentadas as formas de acesso a informações públicas, atribuindo direitos e deveres para a Administração Pública perante todos os cidadãos e cidadãs.
Entre os diversos debates travados na construção da LAI e de seu Decreto regulamentador, editado poucos meses após sua sanção, estava a definição da competência para classificação das informações em seus distintos graus de sigilo, ou seja, quem estaria autorizado a dizer por quanto tempo uma informação sofreria restrição ao escrutínio público.
Antes do Decreto n. 9.690/2019, editado no último dia 24 de janeiro, a classificação no grau ultrassecreto cabia somente ao Presidente e ao Vice-Presidente da República, aos Ministros de Estado e a outras autoridades com as mesmas prerrogativas. Também era conferido tal poder aos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica e, por fim, aos Chefes de Missões Diplomáticas e Consulares, os quais deveriam remeter a decisão de classificação para os Ministros de Estado a que estivessem subordinados para ratificação no prazo de até 30 dias.
Já a classificação no grau secreto cabia a todas as autoridades citadas anteriormente acrescidas dos titulares de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista. Após definir a lista de autoridades competentes para classificação, o Decreto regulamentador vedava — expressamente — a possibilidade de delegação dessa competência.
A restrição no número de pessoas competentes para classificação decorre da gravidade deste ato para a concretização da transparência das informações públicas determinada pela Constituição. A classificação nos graus mencionados implica a manutenção do sigilo sobre informações públicas por até 25 anos, no caso de ultrassecretas, e 15 anos, no caso de informações secretas. Em síntese, caso alguma autoridade decida restringir o acesso a uma informação produzida pelo Estado hoje, ela somente será divulgada à sociedade em 2044, se classificada como ultrassecreta, ou em 2034, se classificada como secreta.
Exatamente por isso que o Decreto que regulamentou a LAI vedava a delegação dessa competência para outras autoridades, pois durante toda a construção do sistema de transparência pública concluiu-se que para consolidar a cultura de transparência no poder público em nosso país seria fundamental ter uma legislação que levasse à risca os mandamentos constitucionais e determinasse que o número de informações sigilosas produzidas pelo poder público fosse o mais residual possível.
Da mesma forma, a responsabilidade da autoridade classificadora deveria ser de grau equivalente à responsabilidade que exige uma decisão que irá privar a sociedade do acesso a uma informação de seu interesse por até 25 anos.
Por isso o Decreto que regulamentou a tão festejada LAI vedou a possibilidade de delegação, restringindo o número de autoridades competentes para classificar informações como sigilosas nos graus ultrassecreto e secreto exatamente ao rol de autoridades previsto na própria lei.
Com isso, resguardou-se que as hipóteses mais drásticas de restrição de acesso a informações ficassem a cargo das autoridades com maiores responsabilidades e, consequentemente, sujeitas a maior controle social, o que é fundamental para a consolidação da cultura democrática em um país ainda marcado por períodos autoritários que mancharam sua história e que ainda tanto nos assombram.
As mudanças trazidas pelo novo Decreto comprometem drasticamente a estrutura prevista na regulamentação original.
A nova regulamentação amplia substancialmente a quantidade de pessoas que podem restringir o acesso às informações públicas. Mais de 1.000 ocupantes de cargos de nível DAS 5 agora poderão receber delegação de competência para classificar informações como sigilosas no grau secreto e mais de 200 ocupantes de cargos de nível DAS 6 para classificar informações como sigilosas no grau ultrassecretas.
A mudança é extremamente grave e vai banalizar o uso do instrumento para a restrição de acesso, que deveria ser excepcional. A nova regulamentação sequer cuidou de impor às autoridades que receberam tal delegação o dever de prestar contas de seu uso ou a exigência de ratificação da decisão de classificação pelas autoridades superiores, exigência que a LAI impõe até mesmo às autoridades com competência expressamente prevista na lei, conforme prevê o parágrafo segundo do seu artigo 27.
A delegação da competência de classificação nos graus ultrassecreto e secreto prevista no novo Decreto ignorou a exigência de ratificação prevista na própria lei e, com isso, ultrapassou seus limites, podendo ser alvo de censura judicial.
A ampliação do rol de pessoas competentes para restringir o acesso a informações nos mais altos graus de sigilo é uma forma incontestável de esconder da população o que se passa na administração pública, impedindo o exercício do controle social e a atuação da imprensa, uma vez que a LAI é um instrumento essencial para a obtenção de informações daqueles que acompanham de perto o governo.
Milhares de jornalistas, ONGs e cidadãos serão prejudicados com o novo Decreto. A LAI revolucionou a forma de organização do Estado, bem como a forma que a sociedade tem para controlá-lo. São inúmeros os casos exitosos de utilização dessa legislação no combate à corrupção praticada por agentes públicos e por cidadãos que se valem de maneira equivocada de verbas e políticas públicas. Não é preciso ir longe para lembrar da bem-sucedida operação Serenata de Amor, que se valeu de informações públicas para identificar usos ilegais de verba destinada aos Deputados Federais, bem como do caso da estudante que descobriu um esquema que desviava dinheiro destinado a bolsas universitárias na Universidade Federal do Paraná.
Tudo indica que o novo Decreto é mais um arroubo autoritário do atual governo e foi construído da forma menos democrática possível, não contando sequer com a participação dos Ministros das áreas responsáveis pela transparência pública, uma vez que foi assinado apenas pelo Ministro da Casa Civil, que certamente carregará essa mancha em seu currículo, assim como o Presidente em exercício.
O novo Decreto cravou em nossa história o dia 24 de janeiro de 2019 como o dia em que a atual gestão começou a levantar barreiras para esconder do crivo da população os atos que praticam em seu nome e que deveriam ser para o seu benefício.
A necessidade do sigilo aponta o desejo de beneficiar interesses escusos, típicos de regimes autoritários e patrimonialistas e, por isso mesmo, impublicáveis.
* Maria Eduarda Cintra é mestra em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Ex-Chefe de Gabinete da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e, atualmente, assessora na Defensoria Pública do Estado de São Paulo.