Jovem transexual comete suicídio e colegas acreditam ter sido motivado após sofrer preconceito
O jovem transexual Nicholas Domingues faleceu na última quarta-feira (5/7), vítima de suicídio, na cidade de São José dos Campos (SP). Na Internet, seus colegas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde ele estudava, afirmam que ele sofria com o preconceito de professores que insistiam em chamá-lo no feminino, assim como da sua própria família.
Na última publicação de Nicholas em seu perfil no Facebook, feita no dia 7 de junho, ele publicou um texto no qual se posicionava contra a transfobia, trazendo o dado da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) que diz que o pensamento suicida é “uma realidade de 66% dos homens trans”.
Confira o texto na íntegra:
“Quem se interessar pelo texto que escrevi para a mesa de hoje, aqui está (foi escrito como eu costumo falar e não como costumo escrever):
Primeiramente, gostaria de pontuar que a discussão que está sendo feita, por mais que na mesa estejam presentes apenas pessoas trans, é uma discussão que deve ser feita por todas e todos independente de identidade de gênero ou qualquer outro marcador social, é uma discussão necessária para que possamos avançar nessas pautas e conquistar direitos juntos. A luta deve ser coletiva porque individualmente é impossível conquistar qualquer direito.
O que vou falar agora pode incomodar e pode ser um tanto quanto agressivo, então peço que se preparem, porque eu não vou poupar palavras quando o assunto é grave. Queria avisar também que quando eu falar de pessoas trans, usarei palavras como “somos, estamos, achamos” porque me reconheço como uma pessoa trans e me incluo na discussão, mas acho extremamente importante ressaltar que nada dito aqui se trata do Nicholas indivíduo, mas sim de um conjunto de pessoas nas quais eu me incluo.
É necessário, ao falarmos de pessoas trans, falarmos de números porque esses números existem e não são aleatórios. No ano de 2016, 144 travestis e transexuais foram assassinados. Outro número divulgado em 2015 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), é que 90% das travestis e transexuais se prostituem ou já se prostituiram em algum momento de suas vidas. Mais um número, para que quem ainda não percebeu que existe um problema agora fique claro, é que o suicídio e pensamento suicida é uma realidade de 66% dos homens trans. Claramente, não é mera coincidência. Claramente, existe um grande problema. Quando aprofundamos a discussão e percebemos que Dandara, travesti apedrejada e morta a tiros, não foi um caso isolado, que Dandara foi vítima de um mesmo sistema que prendeu Rafael Braga, nos revoltamos. Nos revoltamos porque a barbárie, não apenas à população trans, mas aos negros, às mulheres, aos homossexuais, aos pobres, lota os jornais diariamente. “Ah mas Nicholas, a discussão é sobre pessoas trans, porque você ta falando tudo isso?”. Vou explicar novamente: o mesmo sistema que dificulta a inserção de pessoas trans no mercado de trabalho, prende e condena a 11 anos de prisão o negro pobre por andar com pinho sol e água sanitária na rua. É importante percebermos o problema, porque não está certo do jeito que está.
Entendendo que a discussão é mais profunda e que a luta pelo direito das pessoas trans não é apenas uma luta das pessoas trans para as pessoas trans, é uma luta da sociedade para a sociedade, podemos adentrar a discussão e falar sobre os números citados anteriormente e o que eles significam.
Atualmente, como foi dito, o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Essa frase, que quando escutada pela primeira vez assusta porque “Nossa, eu nunca ouvi falar sobre morte de pessoas trans”, mas é claro que nunca ouviu, você nunca ouviu falar sobre pessoas trans. Afinal, quem não existe, não trabalha, não ama, não vive e não morre. E para muitos, pessoas trans não existem e se existem, não devem existir, porque é errado, simplesmente por ser, nada mais. A discussão sobre identidade de gênero não está presente nas escolas, nas mídias, no dia a dia do brasileiro e o desconhecimento gera o preconceito, gera a opressão. Opressão essa que se trabalhada direitinho a gente transforma em suicídio e assassinato, mas tudo bem, ninguém vai ver. Não existe lei que proteja, não existe pessoa que chore a vida de uma travesti e prostituta. Ninguém liga, não vai fazer falta. E assim, o Brasil torna-se recordista mundial em assassinato de travestis e transexuais. Assim, os pensamentos suicidas fazem parte do cotidiano daquela pessoa que não se identifica com o gênero imposto a ela ao nascer, porque como se não bastasse todo o sentimento em relação ao corpo, temos que aguentar a opressão e enfrentar diariamente os olhares esquisitos no banheiro, temos que aguentar nossos nomes desrespeitados e a falta de oportunidades no mercado de trabalho e uma junção disso tudo, meu querido, mata. E mata muito.
O respeito ao nome social é extremamente importante na vida de uma pessoa trans. Mudar o nome na certidão é um processo extremamente burocrático, onde a pessoa deve apresentar laudos médicos (sim, laudos médicos porque precisamos provar que possuímos esse chamado transtorno de identidade) que provem que somos trans e vivemos como homens ou mulheres. Também devemos apresentar documentos como fotos e cartas de amigos e familiares provando que somos homens ou mulheres. Todo esse processo dura por volta de um ano pra cima, difícil vermos casos que demorem menos que isso. Atualmente é lei o respeito ao nome social nos órgãos públicos como o SUS e instituições de ensino como as universidades e escolas. Um avanço muito importante visto que pessoas trans deixam de terminar seus estudos devido ao tratamento que recebem nas escolas. É importante também ressaltar que apenas aprovar, e não só aprovar, como respeitar, foco na palavra “respeito” porque simplesmente aprovar não significa muita coisa, mas enfim, apenas aprovar o uso do nome social por pessoas trans, é necessário permitir o uso do banheiro de acordo com o gênero que a pessoa se identifique. A discussão dos banheiros, muito polêmica por sinal, é uma discussão importantíssima e grudadinha na discussão do nome social, porque são direitos básicos, porém negados à população trans.
O direito precisa avançar cada vez mais nessas discussões, não só criando leis que nos humanizem, mas as executando de forma justa e igualitária, coisa que não vemos acontecer, porque sim, o judiciário escolhe quem fica livre ou não e não é no unidunitê, é na cor da pele e na classe, atendendo muito bem os interesses do capitalismo. Existir um grupo que esteja à margem, um grupo que seja proibido de frequentar certos espaços é interessante e lucrativo a esse sistema. Lembrando que esse grupo à margem não é homogêneo, como citado anteriormente.
Agora falando sobre a condição de trabalho das pessoas trans, fato que não deve ser visto como mera coincidência, é que quando temos a oportunidade de trabalhar somos jogados aos trabalhos informais e de grande vulnerabilidade – como centrais de Call Center e os trabalhos sexuais – onde não somos respeitados, sofrendo diariamente com o desrespeito do nome social e utilização do banheiro, onde a condição de trabalho é extremamente precária, onde existe muita exploração. Voltamos aos números: 90% das travestis e transexuais estiveram ou estão na prostituição. Não é um número baixo. Para uma pessoa trans conseguir um emprego é uma luta. Para que possa ter o que comer e onde dormir, muitos de nós acabam nessas situações vulneráveis e de constante exploração. Uma realidade muito grande também é a expulsão de casa por falta de aceitação da família e, enxergando-se em situação de rua, a pessoa não tem outra saída que não a prostituição.
Nos últimos anos, temos avançado bastante quando o assunto é direito e diz respeito à população trans, mas ainda não é suficiente. Enquanto existirem os números, enquanto formos explorados e mortos, enquanto formos esquecidos e jogados à margem, oprimidos, não será suficiente. É muito complicado pararmos de lutar por nossos direitos nos primeiros sinais de avanço.
Encerro minha fala agradecendo a presença e atenção de todas e todos. Muito obrigado.”