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22 November 2024

Questão de identidade: autodeclarados pretos ultrapassam brancos na Bahia

Para especialistas, aumento no número de pretos autodeclarados na Bahia tem a ver com mudança de comportamento

No Brasil colonial, quando não havia, ainda, uma distinção categorizada para a tonalidade da pele de cada negro escravizado, eles eram diferenciados por ser mais ou menos ‘obedientes’. Os que conseguiam fugir eram identificados como negros e os que não se atreviam a tanto –  tidos como dóceis – reconhecidos como pretos.

O traço da escravidão, sozinho, não explica. Mas, para especialistas, permeia a compreensão sobre o ‘empretecimento’ de uma Bahia que, pelo terceiro ano consecutivo, é o estado onde mais pessoas se autodeclaram pretas, conforme dados divulgados nesta quarta-feira (22) pela Pesquisa Nacional por  Amostra  de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE.

Conforme os dados, enquanto de 2017 para 2018, 308 mil a mais se declararam pretos na terra do dendê, os brancos e pardos são 124 mil e 155 mil a menos, respectivamente.

No ano passado, o percentual de autodeclarados pretos no estado era de 22,9% dos 14,7 milhões de habitantes da Bahia. Ou seja, uma em cada cinco pessoas que viviam no estado não titubeou na hora de dizer que é mais um preto da Bahia. Os brancos eram 18,1%. Em percentual de pretos, a Bahia se mantém à frente dos estados do Rio de Janeiro (13,4%), Tocantins (12,4%), Maranhão (11,9%) e Minas Gerais (11,8%).

Desde 2016, aliás, a Bahia é o único estado no país em que as pessoas pretas são mais representativas na população geral do que as brancas. Naquele ano, eles já eram 20%. Embora a maioria seja historicamente representada pelos pardos – que em 2018 eram 58,1% do total -, o baiano está cada vez mais disposto a afirmar que é preto, sim.

Não o ‘preto dócil’ do Brasil Colônia, mas o que ressignificou, de forma positiva, o ‘ser preto’ e, a partir de uma luta da militância negra, “por opção política”, passou a se reconhecer como tal. É o que defende a socióloga e professora do Instituto Federal da Bahia (Ifba) Marcilene Garcia. Para ela, os números divulgados pelo IBGE dão um panorama de que há uma tendência positiva no discurso de autoafirmação preta.

Rilton acredita que movimentos sociais têm relação com identidade e negritude

Ressignificação
Coordenadora de uma das bancas de avaliação de autodeclarações da Universidade Federal Bahia (Ufba), Marcilene afirma que o processo de transformação no autorreconhecimento do preto começou a ser transformado na década de 1990, por influência do movimento hip-hop.

“Em ‘E disse o Velho Militante’, um livro muito interessante de Cuti [Luiz Silva, escritor paulista], há uma premissa de Correia Leite [militante negro, morto há 30 anos], que diz: Os ativistas vão dizer que não somos os negros da história. Nós somos os negros da história, rebeldes e resistentes’. Isso, porque os negros, eram os revoltados, quando os pretos eram os dóceis”, afirma.

É quando a ideia de se entender enquanto preto ainda é um tabu, também entre os negros retintos, segundo a professora, que o movimento hip-hop, por influência dos Estados Unidos, traz a “valorização” do termo ‘preto’.

“Aí, pessoas chamadas de pretos e pretas passaram a ser vistas de forma positiva, devido à influência dos Racionais MCs e outros grupos, especialmente em São Paulo, onde quem não era um negro ativista era visto como ‘preto’”, explica Marcilene.

Nos dados divulgados pelo IBGE, a professora enxerga mais que números, mas uma mudança de comportamento. “A categoria de pretos tem uma carga valorativa e um caráter político de resistência. Há uma mudança de conceito, as pessoas estão sendo convidadas a refletir: ‘Eu sou um negro? Negro preto ou negro pardo? A minha cor, dependendo da tonalidade, me torna preto?’. Na minha heteroclassificação, alguns pardos passaram a se identificar como pretos e, alguns pardos que, antes se identificavam enquanto brancos, agora, se veem pardos”, completa

Marlúcia afirma que entendimento como mulher negra foi ‘descoberta de si mesma’

“Eu não gosto de falar de empoderamento porque a impressão é que te deram um poder, mas a identidade do povo negro está ligado à força. Não vejo este crescimento só como um dado, mas associado a um período de descoberta interna”, resume.

A jornalista comenta os brasileiros são “culturalmente formados sobre uma base de exclusão”, que inclui, ainda, o fator social. Marlúcia também defende que a ausência de debates acerca das questões raciais dificulta, inclusive, que as pessoas negras cheguem a acreditar que nunca foram vítimas de racismo.

“Assim como para mim, o debate era algo oculto. É libertador quando você se reconhece, porque passa a ver o mundo com outros olhos. Quando você é uma mulher negra preterida, e você não entende como isso está estruturado, você acha que é um problema orgânico seu, mas não é”, salienta Marlúcia.

Para o estudante Vinícius Gomes, 21, se autodeclarar preto foi uma mudança profunda. “Eu sempre tive dificuldade em me declarar negro, preferia ser considerado moreno. A partir do momento que eu me aceitei, foi uma mudança drástica”, conta. A mudança aconteceu depois que Vinícius passou a estudar mais a fundo a história do Brasil e temas como o colorismo, que acabaram o fazendo refletir sobre si mesmo.

O caso de Vinícius pode explicar como, de 2012 para 2018, segundo o IBGE, o número de baianos que se autodeclaravam pardos caiu 3,9%, enqunto o dos que se consideram pretos subiu, no período, 35,5%.

Vinícius conta que estudo sobre a História do Brasil o fez se reconhecer como negro

Já a assistente social Fabiana Pontes, 43, acredita que a questão da identidade preta está mais latente: “O negro tem se visto mais como negro. Geralmente as pessoas se consideram pardas, morenas, e não se identificam como negras. Talvez, essa movimentação de conhecer sua história tenha mudado também a forma das pessoas se declararem”, aposta.

Para o poeta e ator Rilton Júnior, 23, a mudança de perspectiva tem forte influência na autodeclaração das pessoas. “Na verdade, a maioria da população é negra, mesmo que não se declare. Eu acho que os movimentos sociais, o movimento negro, de arte e cultura em geral, tem propiciado para a população essa identificação com a negritude. É um espaço para um posicionamento positivo sobre o ser negro na sociedade, dos benefícios de ser negro e da contribuição do povo negro dentro da sociedade”, defende.

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Negro preto, negro pardo
Para o professor de Literaturas Africanas do Instituto de Letras e pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da Ufba, Josiel Oliveira, os dados divulgados pelo IBGE têm relação direta com o debate da autoafirmação e ações afirmativas.

“São dados que refletem, basicamente, que mais pessoas que se viam pardas agora se enxergam negras. Isso é muito representativo socialmente, é importante. Entretanto, não é algo a se admirar, considerando que temos a maior população de negros do país”, diz.

O racismo, para Josiel estruturado como uma “medula sistemática” no país, é um dispositivo central de opressão que promove preconceitos e discriminação, com distinção dos pardos e pretos.

“Eu não vejo como um problema se uma pessoa antes se entendia como parda e, atualmente, com o processo de transformação e presença da cultura africana, agora se entenda como negra. É parte do processo. Mas as pessoas devem estar atentas ao seu fenótipo, porque os pretos são os que, comumente, serão alvo de violência”, alerta.

Josiel comenta, no entanto, que o debate deve ser positivo. “A gente só precisa ter um olhar atento. Se você é uma pessoa que se autodeclara negra, seja preta ou parda, acho que a maior forma de expressar isso tem de vir acompanhada de atitude, vivência específica do sujeito negro que, em geral, está ligada à discriminação”, reitera.

A possibilidade de que o crescimento na proporção de autodeclarados pretos tenha qualquer relação com uma espécie de “conveniência”, a exemplo da possibilidade de se beneficiar das cotas raciais pode existir, para o professor Josiel, mas de maneira pontual, acredita.

“Quando o assunto é racismo, no Brasil, uma coisa nunca é só uma coisa. É algo muito internalizado. As cotas raciais nas universidades, nos concursos públicos, junto com a constitucionalização da educação étnico-racial, em 2003, são coisas que têm um valor simbólico”, explica.

Josiel argumenta que uma pessoa que passou a se autodeclarar preta possivelmente viveu o processo de ascendência negra e adquiriu uma espécie de orgulho, ou “consciência sintética”.

A banca de autoavaliação das cotas da Ufba tem a intenção, por exemplo, segundo a coordenadora Marcilene Garcia, de apresentar aos candidatos autodeclarados a possibilidade de compreender o que, de fato, pesa para uma pessoa ser ou não ser considerada apta às cotas.

“Quando a Ufba faz uma aferição para impedir as fraudes, o debate ultrapassa o universo das universidades. Pretos e pardos são negros e, inclusive, estão bem próximos de se considerar o fator social. No Censo Demográfico do IBGE (2010), a diferença de salário entre os pretos e pardos era de R$ 45, quando a distinção, em comparação aos brancos, saltava para um salário mínimo”, complementa, ao comentar que a Ufba indeferiu um número considerável de pessoas “irrefutavelmente brancas” nas  avaliações.

Os traços “negroides”, no entanto, são lembrados pela professora como agentes que dão a possibilidade do negro – autodeclarado ou não – sofrer racismo.

Bahia preta, Bahia branca
A Pnad Contínua, cujos dados foram divulgados nesta quarta-feira (22), não detalham a autodeclaração por município. Mas, de acordo o último Censo, de 2010, seis dos dez municípios ‘mais pretos’ da Bahia tinham mais de 40% da população se autodeclarando preta.

Já entre as cidades com mais gente se autodeclarando branco, dois tinha mais de 50% nessa situação. Veja a lista:

Dez municípios com mais autodeclarados pretos:
– Antônio Cardoso (50,65%)
– São Gonçalo dos Campos (41,96%)
– Conceição da Feira (41,25%)
– Cachoeira (40,65%)
– Salinas da Margarida (40,10%)
– São Francisco do Conde (40,01%)
– Santo Amaro (38,44%)
– Ouriçangas (37,74%)
– Saubara (35,16%)
– Igrapiúna (33,83%)

Dez municípios com mais autodeclarados brancos:
– Dom Basílio (54,41%)
– Ipupiara (53,19%)
– Rio do Pires (47,90%)
– Lagoa Real (47,85%)
– Rio de Contas (47,75%)
– Rio do Antônio (46,41%)
– Caturama (45,34%)
– Abaíra (45,17%)
– Jussiape (45,09%)
– Malhada de Pedras (44,65%)

‘Descoberta de si mesmo’
Aos 17 anos, quando ainda optava por fazer alisamentonos cabelos, a jornalista Marlúcia Leal, hoje com 31, passava longe da mulher que se tornou. Nas próprias palavras, o processo de entendimento enquanto mulher negra funcionou como uma “descoberta de si mesma”.